Saudações leitores! Estou de volta depois da correria que foi fazer o Distopia Zero com o parceiro Henrique. E o post de hoje é um exercício, uma brincadeira para imaginar como diferentes sistemas influenciam o planejamento de uma aventura/campanha.
Imaginemos que o grupo é composto por fãs de Forgotten Realms e que todos gostariam de jogar em Waterdeep. O GM, sabendo que o grupo é cabeça aberta e que toparia jogar em qualquer sistema que ele vendesse para o grupo, começa a imaginar o que seria possível fazer em cada sistema (sem houserules!), utilizando os pontos fortes de cada um para definir o estilo de jogo.
Dungeons & Dragons B/X
Começando com um clássico, o D&D preferido de boa parte da OSR. O texto do Moldvay é bastante detalhado em regras para a exploração de masmorra. Os personagens são bastante frágeis e avançam de nível acumulando peças de ouro. Enquanto o Basic é mais focado na exploração subterrânea, o Expert é voltado para o bom e velho hexcrawl, com aventuras em lugares selvagens e perigosos. O foco do jogo é claramente tomar boas decisões, evitar lutas desnecessárias, desenhar mapas e conservar recursos ao explorar a masmorra, e ver até onde seu personagem chega até sucumbir na ponta de uma arma.
O pensamento inicial é obviamente Undermountain, que pode ocupar o grupo por muitos níveis de personagem, enquanto eles utilizam a cidade de Waterdeep para se reequipar e recuperar entre os runs à masmorra. Ao chegar no nível 4, os perosnagens podem se envolver em políticas e perigos que ficam ao redor de Waterdeep, talvez buscando tesouros e missões dada por um patrono, um rico mago da nobreza de Waterdeep.
Dungeon World
O excelente DW em muitos aspectos se disfarça de um retroclone, tendo sido desenvolvido para funcionar nos mesmos aspectos que o D&D B/X, mas com regras completamente diferentes. Já diz o livro: jogue DW para fazer coisas incríveis, lutar junto como um grupo a despeito das diferenças, e para explorar lugares fantásticos do mundo (página 12).
A mesma idéia de aproveitar Undermountain ainda é bastante válida, mas a maneira de abordá-la no jogo vai ser bem diferente. Ao invés de se debruçar em mapas detalhados e uma preparação extensa, basta planejar os Fronts e obedecer os Principles do sistema. Isso significa que o jogo vai ser mais fluído e dinâmico, mas ao mesmo tempo vai ser muito mais improvisado. Um grupo que gosta mais de regas mais presas e mais detalhadas pode não se dar bem com a liberdade narrativa dada no DW (“Mas qual o alcance e o raio da bola de fogo? A quantos metros o goblin consegue atirar a lança dele?”) .
Burning Wheel
Aqui a coisa começa a complicar um pouco. O Burning Wheel é perfeitamente possível de ser utilizado para uma campanha em Forgotten Realms, desde que ninguém do grupo queira jogar de halflings ou gnomos, ou que você não se importe em gastar algum tempo criando as raças (o que é especialmente complicado por causa dos lifepaths). Mas se a galera quiser se manter entre humanos/elfos/anões/orcs, dá para rolar o sistema praticamente RAW (rules as written).
Ao contrário dos dois sistemas anteriores, um dungeon crawl no BW é perigoso. Não raro é necessário apenas um ferimento mais forte para incapacitar um personagem por semanas ou até mesmo anos. Ainda que o personagem só morra caso o jogador permitir, isso pode significar que ele fique anos se recuperando, e ainda volte para o jogo com cicatrizes (atributos reduzidos). Existe um PDF com dicas e orientações de como utilizar o DW para um dungeon crawl apropriadamente chamado Burning THAC0 , mas eu acredito que as virtudes do sistema são melhores aproveitadas de outra forma.
Abandonando então a idéia de usar Undermountain, Waterdeep ainda continua um lugar riquíssimo para uma campanha de intriga. Os personagens podem ser mercadores, nobres, membros de uma guilda, políticos, membros de alguma igreja, ou qualquer outra organização. As excelentes mecânicas do Duel of Wits são bastante apropriadas para uma campanha desse tipo. Aproveitando as regras de combate interessante, o grupo pode também fazer parte de caçadores de recompensa ou membros da milícia, onde seria importante tanto o lado social quanto o combate, e quem sabe alguma chance de colocar em prática o Range and Cover pelas ruas de Águas Profundas. O clima do jogo seria bem mais low fantasy e gritty do que seria em alguns outros sistemas, um claro exemplo das regras influenciando o clima do jogo.
The Shadow of Yesterday/Solar System
Este pequeno e simples sistema tem cada vez mais chamado minha atenção com sua simplicidade. Ele tem muito em comum com o Burning Wheel, com personagens em movimento, mas com um sistema bem menos mortal e mais cinematográfico. Usando o TSoY é possível misturar combates emocionantes e duelos sociais com o mesmo nível de detalhe e cor.
Os personagens do TSoY já começam o jogo bem competentes no que fazem. Juntando isso com as características acima, eu imagino uma campanha cheia de ação mas com muita interação com NPCs bem coloridos, com romances e traições.
O Sistema Importa
Este artigo foi um exercício para mostrar através de exemplos o quanto um sistema influencia na campanha que você está montando, desde os tipos de personagem, até o clima da ambientação e quais tramas você irá colocar em jogo. E vocês, que tipo de campanha pensariam em outros sistemas? O que poderia rolar em um FATE, ou no próprio D&D 4E?
Excelente artigo Pedro.Gostei muito deste exercício, imaginar como os diferentes sistemas proporcionam diferentes experiências em um mesmo cenário.Utilizei Waterdeep em algumas sessões de jogo e pegada para a quarta edição é bem diferente do AD&D por exemplo.Mais uma vez, excelente artigo.
Mestrei uma campanha recentemente de Ravenloft usando o sistema HeroQuest 2a ed, que foi um tremendo sucesso. Antes já tinha mestrado algumas sessões de Forgotten Realms também usando HQ2. É claro que, com HeroQuest sendo o outro extremo do eixo gamismo-narrativismo em em relação ao D&D, ele só funciona mesmo se o grupo estiver no clima para contar uma boa história com base num sistema simples em que convicção e personalidade importam mais do que armas ou força. Mas com a expectativa e clima certo com o grupo, HQ2 funciona muito bem, e hoje é minha escolha número 1 para quando jogamos em mundos de D&D.
Acho interessante isso, realmente a escolha do sistema acaba dando a levada do jogo. Tem muitas particularidades de regras que acabam se transcrevendo ao cenário.Em D&D e seus derivados diretos, o jogo acaba sendo bem impessoal no começo; a tal “história que o mestre criou” acontece em segundo plano independente na maior parte do tempo das ações e aspirações dos personagens. Demora um pouco pra engrenar nesse quesito, mas por outro lado *D&D* nunca precisou de motivação, a idéia é começar direto na parte do jogo onde os dados rolam e dar boas risadas.Faltou talvez falar se um sistema simulacionista ai né? Por exemplo, em GURPS meu palpite é que o grupo fosse algo mais mundano, talvez a milícia investigando crimes na cidade, uma gangue de bandidos ou mercenários. Enfrentar grandes monstros seria algo a ser planejado por bastante tempo. Adentrar Undermountain? Só se fosse como uma expedição de exploradores (talvez estudiosos sobre magia ou história do local); é mortal de mais enfrentar qualquer coisa em GURPS.O Call of Cthulhu: Dark Ages seria um outro exemplo simulacionista onde escolher um sistema altera completamente a aventura. Um que os personagens estariam limitados a humanos; outro que o sistema já mataria a magia (ou a maior parte dela) e transformaria qualquer monstro medieval numa besta invencível. Seria uma campanha onde bestas saem das entranhas da terra para aterrorizar Waterdeep, mas não de uma maneira tão brutal e grosseira como Ravenloft. Ou então, se a idéia é não mudar tanto o foco do jogo, talvez Pendragon onde os personagens fossem Cavaleiros de alguma ordem (dragões purpuras?), basicamente guerreiros que se acham paladinos, mas não consigo prever mais que uma aventura de sobre-vida para os pobres coitados. Acho que tanto em FATE quanto em BW, o jogo acaba sendo centrado totalmente nos personagens. Em FATE (talvez usando legend of anglerre) é fácil ver o grupo como personagens com ligações extremamente pessoais relacionadas a adentrar Undermountain, senão eles nem cogitariam ir ao local; a aventura não teria Dungeon Crawling nem nada do tipo, todas as lutas teriam algum motivo; a propria criação comunitária do cenário inicial cuidaria disso e já saberiamos de cara quem é o vilão em foco, qual o problema a ser resolvido, o que precisa ser investigado… e o nível dos personagens em FATE permitiria que eles estivessem entre os melhores em seus campos, de forma que ganhar poder não é um dos focos do jogo.Seria bacana ver esse tipo de artigo novamente, com outros cenários =)
Grande post! Há algum tempo, escrevi um post no Falando de RPG que falava como usar de várias temáticas em um único sistema, teu post me lembrou este que escrevi e toda a discussão que gerou. No final das contas, o que fica claro é que as regras são uma moldura, ou melhor, elas são a paleta de cores que colore a narrativa, por mais que eu possa tentar deixar as coisas mais desafiadoras na 4ed., por exemplo, uma narrativa feita com este sistema, nunca chegará aos pés de algo feito com Ad&d, no que toca ao clima oldschool.
teste
Aguardando resenha do The Shadow of Yesterday!Gilson
Valeu pelo comentário, Pedro!Eu fui reler o HeroQuest depois da sua menção, principalmente do pass/fail cycle. E fiquei impressionado o quanto o jogo ainda funciona no esquema GM-centric, com história predeterminada e inclusive com dicas bem explícitas de ilusionismo (as regras de mock contest me deixaram de queixo caído). As regras do sistema são interessantes, mas ele definitivamente não é narrativista, ele é apenas um simulacionista com menos foco em regras/simulação física.Eu fiquei bastante curioso, já que o Hero Wars (antecessor do HeroQuest 1e) é bastante citado pelo Ron Edwards pelo narrativismo, mas pelo visto o Laws perdeu a mão nas edições subsequentes.
Com certeza o sistema importa. Depois de dar muito murro em ponta de faca, fui achar sistemas mais de acordo pro tipo de histórias que eu queria contar.No meu caseirinho, dungeon crawls em Undermountain seriam impensáveis, semelhante ao BW, a não ser como expedições que se provariam pointless a não ser que houvesse um objetivo muito específico (e ainda assim, os PJs tinham grandes chances de morrer no terceiro ou quarto combate). Em uma campanha minha, o pessoal passou por uma cidade semelhante a Waterdeep (grande, cosmopolita, centro de comércio), e realmente queria sair de lá rapidinho, por conta da grandeza das coisas, das intrigas carregadas e da máfia e os serviços perigosos que eles pegaram para ela. Na verdade, no geral eles têm sentido bastante essa diferença – sempre que esquecem que não estão jogando D&D, se dão mal 😛
É incrível como a mentalidade “D&D” se arraiga facilmente e logo, personagens caem como moscas vítimas de suas falsas percepções.
Eu diria que o sistema é definitivamente narrativista, e não consigo ver como poderia ser definido de maneira alguma como simulacionista. Não existe nenhuma regra, nenhum foco no sistema, para simular a realidade, mas sim para fazer com que elementos da narrativa sejam o fator determinante nos conflitos. Por exemplo, o mesmo oponente pode representar um conflito de dificuldade diferente de acordo com a necessidade do fluxo da trama – isso nunca aconteceria em simulacionismo.E não existe muita diferença entre HeroWars, e a primeira edição do HeroQuest, e a segunda. As maiores diferenças são principalmente as regras de Extended Conflicts, e o número de auguments que pode ser usado em um conflito.Ilusionismo não é parte central do sistema. O valor da resistência (a dificuldade) de todos os conflitos é normalmente óbvia e transparente para os jogadores. Quando eu mestro HeroQuest eu até coloco no quadro branco da sala de jogos o número da resistência básica nesta sessão, e sempre digo aos jogadores antes de cada conflito se a resistência do conflito é high, very high, etc, então os jogadores sempre sabem qual é a dificuldade antes de fazer o rolamento. Nenhum ilusionismo aí.Onde realmente existe ilusionismo é na regra de mock contests, que eu pessoalmente nunca usei, e ninguém é forçado a usar.O que é preciso lembrar, é que HeroQuest é mais um toolkit do que um sistema monolítico de regras inter-dependentes, no sentido de que além do sistema central de resolução de conflitos, você pode escolher usar ou não as outras regras de acordo com a sua preferência, sem desestabilizar ou descaraterizar o sistema. Muita gente que joga HeroQuest não usa o pass/fail cycle, por exemplo, e já joguei até com quem usa exclusivamente simple contests e nunca extended contests, e pouca gente usa mock contests – enfim, o sistema é modular e muito flexível, projetado exatamente para permitir que você escolha as regras que quer usar juntamente com o a mecânica central.
Obrigado Gilson, uma hora ele sai, eu já li o sistema mas ainda não terminei de ler o cenário, por isso pode demorar um pouco 🙂
Eu discordo que seja correto dizer que um sistema extremamente simulacionista como o The Riddle of Steel (que eu já mestrei várias vezes e conheço bem), só porque tem pequeno componente narrativista (Spiritual Attributes), seja por isso um sistema narrativista. Da mesma maneira, não considero correto dizer que o HeroQuest é simulacionista quando o sistema inteiro é narrativista, mas uma única regra opcional vai contra o narrativismo. Seria mais correto você dizer que The Riddle of Steel é um sistema simulacionista com alguns elementos narrativistas, e HeroQuest é um sistema narrativista com poucos elementos que suportam o ilusionismo.A ainda discordo que se você não usar o pass/fail cycle (que aliás o próprio livro diz ser opcional), ou outros elementos do HeroQuest além da mecânica central, você não está jogando “rules as written”. Eu não uso mock contests, nunca usei pyrrhic victory, etc, mas ainda assim diria que jogo “rules as written” – se não estou modificando ou adicionando nenhuma regra, e não estou deixando de usar nenhuma parte da mecânica central do sistema, não considero que seja um “drift”; ainda é o mesmo sistema.
O elevado nível da discussão DEVERIA se tornar um novo post 🙂