Cavernas, Hexágonos e Feitiçaria

Ao longo dos anos, publicamos nas várias encarnações espirituais do atual Dados Místicos, alguma coisa sobre o movimento OSR, embora ele nunca tenha sido o nosso foco principal.

Neste artigo vamos falar sobre Caves & Hexes (C&H), o primeiro retroclone brasileiro.

Hoje, se procurarmos referências sobre o movimento OSR em português, teremos muito material para ler e muitos grupos interessantes onde discutir e criar, em comunidades que não param de crescer.

O Diogo Nogueira (não confundir com o cantor), autor do blog Pontos de Experiência e de alguns RPGs como Espadas Afiadas & Feitiços Sinistros e Solar Blades & Cosmic Spells puxou o movimento por um bom tempo e seu entusiasmo, sem dúvida, contribuiu para a tradução – de fato e de direito – do Dungeon Crawl Classic (DCC), um legítimo representante do movimento OSR para o nosso bom e velho português.

No Brasil, até a publicação do DCC RPG em 2017, as únicas experiências genuinamente old school disponível em nosso idioma, eram a caixa preta do D&D ou o D&D da Grow, publicado em 1993, como relata o DM Quiral no artigo D&D da Grow, no Mundos Colidem, o Old Dragon da Buró Brasil e o Foices & Feitiços do Marcelo Paschoalin (2016).

No episódio 06 do podcast Café com Dungeon, lançado em 26/03/2018, Rafael Balbi e Carlos Silva falam sobre RPG Old School, e dão a tônica do que o podcast se tornará. Na opinião deste que vos escreve, o podcast se tornou a maior referência sobre old school na língua portuguesa, trazendo discussões e aprofundamentos sobre essa forma de jogar, embora ainda não houvesse a produção de conteúdo na forma escrita.

No episódio 535, cerca de um ano e dois meses depois daquele episódio 06, o Café com Dungeon apresenta o Caves & Hexes, um retroclone, cuja proposta, segundo os autores, é:

Emular o estilo de jogo contido em RPGs do início dos anos 1980, embasados na “Open Game License 1.0a” da Wizards of the Coast, mas com uma ousada (ainda que modesta) proposta: realizar um alinhamento aos conceitos trazidos por Matt Finch em seu “A Quick Primer for Old School Gaming”.
– Caves & Hexes

O Quick Primer foi traduzido pela Aline Terumi, Carlos Silva e Rafael Balbi com o titulo Uma Rápida Introdução ao Estilo de Jogo Old School e está disponibilizado gratuitamente para download.

O SRD do C&H segue um padrão parecido ao Old School Essentials (versão em português por Dados Místicos, aqui), no qual também se inspira, mas alguns ajustes nas regras podem tornar a experiência de jogo, um pouco diferente de outros retroclones.

A releitura dos sistemas que serviram de base para o C&H prioriza alguns pontos muito discutidos na comunidade OSR:

O resultado dos dados é soberano

Se um teste é feito, os resultados obtidos nos dados devem ser considerados, sempre. Nada de mudar os resultados para ajustar a um curso de ação desejado. Lembre-se, a narrativa é emergente e os elementos de mecânica do jogo devem se integrar ao ecossistema narrativo.

Testes de Moral são obrigatórios

Os testes de Moral definem, dadas algumas circunstâncias, como as criaturas que estejam engajadas em combate reagem caso sejam confrontadas com forças superiores, ou que pelo menos consigam resultados mais favoráveis para seu lado.

No C&H o teste é feito sempre que o primeiro aliado morrer e em seguida quando metade do lado aliado for morto ou ficar incapacitado. Uma falha no teste significa que os remanescentes fogem ou se rendem.

Os testes de Reação

Eu sou particularmente fã das jogadas de Reação, que basicamente significa a forma como uma criatura reage aos personagens e cujos resultados tem que ser traduzidos para a narrativa, ali, na hora.

O modificador de Reação do Carisma do personagem tentando a interação é muito importante e Carismas altos podem fazer com que a criatura, pelo menos, não ataque imediatamente o seu personagem.

As outras premissas

Outras premissas do jogo são intrínsecas do OSR, como o diálogo entre mestre e jogadores. Uma vez que o jogo não dispõe de perícias – embora existam algumas habilidades – para serem testadas e testes de Atributo não são considerados, nem mesmo como regra opcional, entender o ambiente e interagir com ele, é fundamental e isso só é possível através do diálogo dos jogadores com o mestre.

Os personagens são de certa forma frágeis, portanto, os combates tendem a ser mortais. Evitá-los ou conseguir vantagens antes que uma batalha aconteça é uma premissa fundamental do sistema.

Outro ponto importante é no que diz respeito ao gerenciamento de recursos. Vai em uma aventura? Cuidado com a quantidade de água, comida e tochas que carrega, bem como as ferramentas que leva. Isso determinará suas chances de sobrevivência.

Sobre classes e raças

O C&H, assim como as primeiras edições de D&D, considera que anões, pequeninos e elfos possuem suas próprias habilidades, não pertencendo a uma classe específica. As classes (Clérigo, Guerreiro, Ladrão e Mago) são exclusivas dos humanos.

No C&H o Guerreiro e o Ladrão são ligeiramente diferentes, quando considerando outros sistemas, como o OSE, por exemplo.

O Guerreiro possui uma distribuição mais homogênea de sua capacidade de luta com o passar dos níveis. Já o Ladrão teve algumas habilidades que soavam dissonantes – aquelas testadas em termos percentuais – removidas completamente e substituídas por uma única habilidade chamada ladinagem.

Anões, Elfos e Pequeninos possuem limitações de níveis: 12, 10 e 8 respectivamente. Clérigo, Guerreiro, Ladrão e Mago podem avançar até o 14º nível e todos eles estão disponíveis no SRD disponível online, de forma que é só acessar e jogar.

Será que o Caves & Hexes é para mim?

Uma pergunta difícil, cuja resposta dependerá de inúmeros fatores, principalmente relacionados ao tipo de aventura que você deseja experimentar.

Se você quer algo mais heroico, com personagens com muitos poderes e que estão sempre prontos a salvar o mundo todos os dias pela manhã, talvez seja melhor escolher outro sistema. Caso você deseje aventuras mais mundanas, focadas em exploração e onde a gestão de recursos pode significar a diferença entre a vida e a morte de seu personagem, aconselho que considere fortemente o Caves & Hexes.

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Visualizar Comentários (6)
  1. Excelente artigo, Franciolli. Só não entendi quando você menciona que o Caves & Hexes é o primeiro retroclone brasileiro. O Old Dragon não se encaixa nessa definição? De qualquer forma desejo bastante sucesso, tomara que saia uma versão POD que eu compraria com certeza.

    Se é o meu retroclone favorito eu já não sei dizer. Ele tem algumas decisões um pouco estranhas, como a de não permitir testes de atributos nem como regra opcional. Fico me perguntando onde tem isso no Old School Primer, já que mesmo nas aventuras antigas escritas pelo Gygax tem testes de atributos. Por outro lado, teste de moral e reação são excelentes, e colocar um lembrete de que elas não são opcionais é ótimo. Vale também dizer que quando eu consultei semana passada tinha classes opcionais como druida e paladino, e quando fui ver hoje já não tinha mais, então o sistema ainda está em constante evolução.

    Pelo nome do sistema, acho que ficou faltando uma discussão sobre hexcrawl e sandbox, aos moldes do que tem no Stars Without Number. Do jeito que está acaba sendo só um sistema base para o mestre usar seu conhecimento prévio para rolar um jogo. Mas a mesma coisa pode ser dita do OSE, então não sei se é uma crítica válida. De qualquer forma fica como sugestão.

    1. Franciolli Araújo

      Salve, salve Pedro.

      O Old Dragon não usa o termo retroclone, mas se define como old school. Já o C&H se autodeclara como retroclone.

      Confesso que a princípio é estranho a não existência de testes de atributo, mas na página 9 da versão traduzida do Quick Primer, em uma nota lateral, o Balbi coloca que os testes de atributos não existiam no D&D original, uma opção que eles então utilizaram no C&H.

      Em relação ao hexcrawl e sandbox, agora que você comentou, realmente faltou, mas espero falar mais sobre esses aspectos em artigos futuros para preencher essa lacuna.

      1. Sobre o teste de atributos: você tem razão, Franciolli! Eu estava confundindo pois nunca li o OD&D, apenas o B/X e suas aventuras. Acho que na época que o B/X foi lançado o teste de atributo já estava presente nas regras.

        Confesso que não sou muito fã de teste de atributos como ele normalmente acontece no oldschool. Muito se fala que no oldschool os atributos não importam tanto quanto nas edições modernas, mas aí você pega uma aventura e ela pede um teste de força. E se for testar um atributo puro, tirando um valor menor que o atributo no d20 como normalmente acontece, o valor do atributo é ainda mais importante que no new school.

        Eu só fico pensando como que seria para arbitrar situações em que a habilidade do personagem é relevante para superar algum obstáculo durante o jogo sem teste de atributo. Eu acho que seria inevitável cair em sistemas ad-hoc de resolução, e não sei se acho isso tão bacana assim também.

        1. Fala Pedro, vou tentar cortar algumas bolas que levantou, beleza? =)

          Os testes de atributo apareceram no Basic do Moldvay como um exemplo de ruling e em algumas aventuras ao longo dos anos 80, sendo consolidados como regra apenas mais tarde, se não me engano no Dungeoneer’s Survival Guide, para AD&D, e na evolução do Mentzer.

          Consideramos que não há um problema no teste de atributo como ruling na teoria, mas na prática ele acaba valorizando demais os atributos e criando toda uma gravidade mecânica que passa a afunilar praticamente todas as resoluções do jogo, além de tornar desejável o acionamento da rolagem por parte do jogador que tem um atributo bom.

          Isso acaba empurrando o playstyle um pouco para longe do que admitimos ser o ideal de acordo com o mentor espiritual do nosso design, que é o Quick Primer for Old School Gaming, que você pode encontrar em versão traduzida, comentada e ilustrada no site do Caves & Hexes.

          Especificamente falando, ele prejudica um pouco a idéia de testar o jogador e não sua ficha e a idéia de arbitragens em vez de regras: a primeira porque, como dito, estimula soluções de acordo com o melhor atributo; a segunda porque traz uma solução mecânica que enxerga um conflito sempre a partir da capacidade do personagem, quando de forma geral a narrativa pode indicar uma resolução mecânica e dramática para muito além disto.

          Como defende Greg Gillespie, o núcleo da rolagem no old school está no risco e isso, junto com os parâmetros que o sistema dá, norteiam as rolagens, que são de forma geral difíceis e representam um risco assumido pelos jogadores. O jogo consiste bastante na gestão de risco e caos por parte deles, a partir do diálogo ficcional com o mestre, o que leva a rolagens mais pontuais e dramáticas.

          De fato estamos trabalhando ainda nas regras e o site ainda reflete isso. Trata-se do núcleo duro do nosso jogo que ainda está em versão alpha, com bem mais que 200 horas de playtest e mais de uma dezena de mestres. Estamos estressando bastante as nossas propostas em um projeto de West Marches, mesa aberta pela qual passaram mais de 100 jogadores, explorando o módulo de megadungeon Forbidden Caverns of Archaia, então os poucos elas vão consolidando e o site ficando mais estável.

          Estamos alimentando aos poucos também com mais conteúdo e uma das principais adições vindouras é um kit de hexcrawl que estamos estudando especificamente para o Caves & Hexes, trazendo um aprofundamento maior, mas sem perder retrocompatibilidade com módulos clássicos como Isle of Dread. Fruto de estudos feitos ao vivo na campanha Ouro & Glória, de hexcrawl, que foi ao ar no canal Perdidos no Play, e dos estudos feitos durante os workshops de hexcrawl realizados junto ao grupo de assinantes do podcast Café com Dungeon, além das discussões da comunidade.

          Uma das principais contribuições que esperamos dar com o Caves & Hexes, porém, não estará no site. Caso o projeto se torne um produto viável de lançamento como produto no mercado, esperamos nos esmerar na escrita do jogo, especificamente na parte instrucional, não só refletindo melhor a natureza de “caixa de ferramentas” do sistema, mas também explicitando as dinâmicas de jogo que estudamos a partir do Quick Primer for Old School Gaming.

          Se você quiser mais detalhes, pode trocar idéia conosco ou ouvir meu podcast, o Café com Dungeon. Lá temos o quadro Old is Cool, no qual abordamos old school gaming e que conta com uma série de 9 partes chamada “Destrinchando o Quick Primer”, na qual lanço as bases que fundam o Caves & Hexes, e alguns episódios com todos os autores explicando decisões de game design por trás das mudanças que propusemos. Você encontra o podcast no spotify, em qualquer agregador de podcasts ou em http://www.regradacasa.com.br

          Para terminar (perdão pelo wall of text), eu e outro autor do C&H fizemos uma participação em um painel da Off GenCon OSR deste ano falando sobre o estilo de jogo Old School e pudemos abordar bastante essas questões levantadas. Você encontra no canal de youtube do Regra da Casa.

          Caso queira participar dos playtests e mandar mais feedback, teremos toda atenção do mundo.

          Um abraço!

  2. rafael beltrame

    Puxa, mas tivemos materiais como o do Marcelo P. antes, né? Achei legal a matéria, e o jogo deles foi uma ótima alternativa para a cena. Mas faltou ao autor uma pesquisa um pouco mais dedicada a história da osr no Brasil, pois o texto aponta erros históricos. Estou a disposição para ajudar, e com certeza o Balbi, o Diogo, e tantos outros mestres podem ajudar a dar uma clareada na matéria. Abraço!

    1. Agradeço imensamente a sua contribuição Rafael.

      Vou procurar as referências, fugir do enviesamento que acabei cometendo e apresentar outros retroclones de D&D genuinamente brasileiros, mas é importante que o RPG em questão tenha sido produzido em português e afirme, ele mesmo ser um retroclone.

      Mais uma vez, muito obrigado.

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