Saudações leitores! Escrevi este texto para um tópico no Fórum RPGChat, mas achei pertinente compartilhar via um artigo. Se desejarem entrar em uma discussão mais profunda, não deixem de entrar no fórum para debater. Já avisando os navegantes: eu tento falar da teoria da maneira mas prática possível, mas não deixa de ser mais blá blá blá de teoria de RPG. Esteja avisado. 🙂

Este assunto pode ser encarado como um paralelo ao meu outro texto Conduzindo a História, em que o estilo Predeterminado é o História-Antes, e o Protagonista é o História-Agora.

História-Antes

Recentemente ando me engraçando com o Trail of Cthulhu, um jogo que funciona completamente no simulacionismo tradicional com enormes técnicas de participacionismo. Os cenários prontos, que são fantásticos, possuem uma estrutura de começo, meio e fim, possuem pistas que precisam aparecer em determinados momentos para que a aventura siga o rumo, e tem um clímax pré-defindo, escrito na aventura.

A única coisa que me fez manter o interesse depois de saber disso foi obviamente o tema. Eu sou muito fã dos mitos lovecraftianos, e sempre quis mestrar algo nesse estilo, mas a quantidade de GM-Force e participacionismo necessário para rolar uma aventura de um jeito bacana me chocou. Eu, story-gamer narrativista, fazendo railroad? Impensável!

Mas eu li, reli e procurei opiniões pela internet. E percebi que eu estava errado em achar isso ruim, por definição. Isso é sim divertido, desde que você encare o jogo de forma diferente. Que você saiba que existe uma história, um mistério terrível, pronto para ser desvendado para os jogadores. Que colocando NPCs certos nas horas certas da sessão, você pode provocar sentimentos e emoções nos jogadores que irão potencializar ainda mais o clima da aventura.

Claro, os jogadores podem fazer o que quiser dentro da sessão. Mas existe uma regra implícita, de o que importa é aquele mistério e eles estão ali para resolvê-lo (ou quase). A graça se torna então aproveitar a aventura, conversar com NPCs sinistros, ter medo do desconhecido e do horror em encontrar coisas inimagináveis. Em termos de teoria, de explorar o imaginário coletivo. Sim, tem uma história pré-planejada, que talvez os jogadores não tenham tanta autoridade para alterá-la, mas quem se importa se a jornada for divertida?

Isso é a raíz do simulacionismo (e participacionismo!), mas foi preciso o Rastro de Cthulhu para que eu a visse sob bons olhos novamente. E quem sabe até colocá-la em prática: estou tentando juntar o povo para mestrar uma aventura.

Antes de falar do story-now, quero falar do que eu percebo como desvantagens que eu sentia utilizando o método tradicional. Sim, elas existem, e foi por causa delas que eu acabei indo para o lado indie da força.

  • No story-before, o GM é responsável por muita coisa. Se o grupo não está se divertindo, é comum o culpado ser o coitado do mestre.
  • A quantidade de trabalho é gigantesca. Por mais que eu tentasse improvisar, era necessário planejar encontros, cenas, bolar um ritmo narrativo, o clímax  e ainda tentar organizar tudo isso durante o jogo.
  • O jogo demora para engrenar. O começo é sempre lento, sem muita graça, já que a história ainda não começou a se desenvolver e os PCs ainda estão investigando o que está acontecendo. Da mesma forma, é quase obrigatório o jogo ter uma duração maior, já que demora várias sessões para a história começar a ficar boa.
  • Sempre existe a chance dos jogadores não darem a mínima para a excelente história que você planejou, e resolverem voluntariamente ir procurar outra coisa para fazer. Daí vem aquelas histórias de “jogadores ingratos que não respeitam a aventura”, ou se o GM forçar eles a continuar na história, o temido railroad.

O método story-now também tem suas desvantagens, mas antes de falar sobre elas eu vou descrever melhor o que é isso de fato.

História-Agora

Ok, story-now! O que infernos é isso?
Em suma, é que não existe uma história pré-definida, antes do jogo começar. Toda a história que importa irá ser criada durante o jogo, a partir das ações e reações dos jogadores e do mestre, se houver, e a interação delas com as regras.

Isso não significa que o mestre simplesmente cria um cenário (ou é criado colaborativamente em grupo) e aí os jogadores podem fazer o que quiser. Isso não é simplesmente plantar um monte de ganchos de história no cenário e deixar os jogadores livres para fazer o que preferirem. O nome disso é sandbox, e é um estilo distinto.245

Todo o ponto de se jogar story-now é de explorar um tema. Isso demorou para entrar na minha cabeça: que p@$% é essa de tema? Resumindo, você pode pensar em tema como uma pergunta ou dilema difícil para um ou mais personagens.

Vamos pegar por exemplo o Fiasco. Não existe uma história pré-definida, ninguém sabe como vai terminar. Mas existem ferramentas, regras, que direcionam os jogadores a criar personagens e situações com um foco específico. Costumo pensar nesse foco, o tema, em algo como O que os personagens terão que fazer para alcançar suas ambições? Quão longe eles estão dispostos a ir?  Todo o restante do jogo é feito e desenhado para que no final se chegue a uma conclusão interessante para estas perguntas. Por exemplo, no meio dele você tem o tilt, onde a situação muda de forma dramática e os personagens terão que repensar como lidar.

Perceba que em nenhum momento esta pergunta, ou o tema, fica explícito no jogo. E ele não precisa nem deve ser explícito, pois isso vai da interpretação de cada um. A melhor ferramenta para explorar isso de forma implícita é se focar em situações.

Boas situações são momentos de jogo carregados de drama e emoção, onde a adrenalina corre solta e todo mundo está curioso para saber o que vai acontecer. A diferença disso do método tradicional é que o GM está curioso com a forma que os temas (as perguntas temáticas, lembra?) serão abordados pelos jogadores e qual será a conclusão. Não existe um caminho pré-definido para seguir, não existe história para ser contada pelo GM, não existe um clímax pré-definido, não existe uma estrutura narrativa imposta. Tudo que importa é resultado do que os jogadores resolvem fazer nas situações.

Mas como se chega nessas situações interessantes? Os sistemas diferem bastante nesse sentido, mas a grande maioria deles se foca na criação de personagens interessantes, com laços, relacionamentos, preocupações, desejos e crenças. Os jogadores não criam esse tipo de personagem para poder “interpretar melhor”, sejá lá o que for isso, mas sim para criar munição para a criação dessas situações. No story-now é contraprodutivo um jogador falar que “quero jogar com o guerreiro”, não por motivos de roleplay, e sim por que vai ser muito difícil criar situações engajantes para este personagem.

O out
ro lado da moeda é o mestre, que tem que introduzir estas situações em jogo. Ele faz isso usando a mesma ferramenta que um mestre no story-before usa: através de preparação. Ele prepara bangs, NPCs com interesses conflitantes com os personagens, facções com objetivos próprios, faz listas de idéias do que seria interessante acontecer no jogo. Quando o jogo começar a esfriar, basta jogar uma dessas “batatas quentes” no colo dos personagens e ver o que acontece. Repita quantas vezes for necessário.

Em uma sessão de Mouse Guard, usando uma aventura pronta por sinal, um dos personagens era o certinho, o estóico, experiente e prático líder da patrulha. Já um outro personagem era um jovem aprendiz, que ainda não tinha conseguido sua própria capa, e que queria provar o valor dele e da patrulha para todos que precisassem de ajuda. Em um determinado momento do jogo, um NPC veio pedir ajuda para o líder e tentou convencê-lo a ir para além das fronteiras para recuperar um anel de casamento que tinha ficado nas ruínas de sua antiga casa. O lugar é perigosíssimo, infestado de doninhas, mas isso era tremendamente importante para a família.

A aventura colocou o NPC e eu assisti curioso o que ia acontecer. Será que o líder ia aceitar ajudá-lo, mesmo tendo coisas mais importantes e menos arriscadas para fazer? Será que o jovem membro da patrulha vai querer ajudar o velho mesmo que isso coloque em risco a vida de todos? Eu não sabia o que ia acontecer. Eles não tinham que ajudar o velho pois era lá que a aventura estava, eles não tinham um caminho a seguir. Coloquei a situação no colo deles e observei o que aconteceu.

Se eles fossem ajudar o velho, seria questão de colocar obstáculos complicados e perigosos para que eles consigam completar a missão. Se eles não ajudassem o velho, talvez manchassem a reputação da guarda quando o velho e sua filha morressem além da fronteira tentando recuperar o anel. Qualquer uma das duas coisas seria interessante, e talvez eu precisasse pensar e planejar uma situação seguinte para engajar os personagens, mas isso não importava para os jogadores e suas decisões.

Concluindo: existe uma história, mas não é pré-planejada nem bem amarrada de início, mas que mesmo assim não deixa nada a desejar frente ao story-before em matéria de drama, emoção e momentos de decisão.

E as desvantagens do story-now? Quais são elas? Eu consegui pensar nas seguintes, mas certamente existem outras:

  • Você precisa encontrar um equilíbrio do quanto você consegue improvisar, e o quanto precisa planejar. Sim, o tipo de planejamento é bem diferente do story-before, mas uma boa preparação faz milagres para o jogo.
  • Às vezes uma situação que você acha que vai dar um belo drama acaba sendo um ponto muito óbvio para os jogadores, e não tem a adrenalina que você esperava quando estava preparando. Isso é bem comum no início do jogo, antes de conhecer bem os personagens. Não é certeza de acontecer, mas pode rolar.
  • Jogadores acostumados com o story-before podem não se adaptar, ou sequer ter interesse em experimentar este método. É uma questão de preferência, esse não é “o jeito certo de se jogar”, de jeito nenhum. O seu grupo pode achar melhor se manter no esquema tradicional.

Ciclo de Jogo

O Chris Chinn do blog Deeper in the Game descreveu o que seriam os ciclos de jogo usuais para cada estilo e que pode ajudar a visualizar:

story-now

 

Em um artigo do Ron Edwards chamado Setting and emergent stories ele fez diagramas comparando as duas formas de jogo, que adaptei (porcamente no Powerpoint) para o artigo:

story-now-2

 

story-now3

Vale a pena chamar a atenção para que nos exemplos citados, o story-now se foca muito menos em cenário do que o story-before. Esse é um estilo de história-agora, mas não é o único. É possível fazer um SN focado em cenário, e é sobre isso que o artigo citado anteriormente do Ron Edwards explica e que eu recomendo a leitura.

Outra indicação é o artigo Creating Theme do Vincent Baker que me fez entender finalmente o que é o tema. Recomendo fortemente a leitura para os interessados.

Espero que eu tenha conseguido ser claro, mas qualquer dúvida deixem nos comentários!

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Escrito por Pedro Leone
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