Quando comecei a jogar RPG, morava na cidade de Parnamirim/RN, que em meados dos anos 1990 era residência de menos de 120 mil habitantes.

Naquela época, conhecia apenas um outro grupo de rpgistas na cidade, e somente quando comecei a fazer parte desse grupo, foi que tive contato com outros mestres.

Nossos jogos seguiam uma sequência: chegávamos ao local de jogo (a casa de um dos jogadores), conversávamos um pouco, jogávamos, e quando a sessão terminava, agendávamos nossa próxima sessão. Quando éramos agraciados com XP suficiente para alcançar um novo nível, fazíamos as alterações requeridas e íamos para casa, nos encontrando somente na próxima sessão — era uma época sem internet e muito menos redes sociais.

Imagem do Rules Cyclopedia, publicado pela TSR em 1991.

Aos poucos fui entrando em contato com outros grupos na cidade, que tinham faixas etárias distintas, jogavam tudo que havia disponível em português e inglês, e que ainda possuíam estilos de jogo exóticos (eu pelo menos via assim na época), sendo os mais peculiares: jogar Vampire Dark Ages ou Ravenloft encapuzados e à luz de velas, bebendo vinho.

Cheguei a participar de uma sessão de Vampire Dark Ages naquela ambientação, sendo a primeira vez que tive contato com um livro de RPG em inglês, um belíssimo exemplar com capa dura e páginas que imitavam um autêntico livro medieval, com iluminuras belíssimas que ajudavam na imersão.

Escudo do mestre da edição de 20 anos do Vampire Dark Ages, publicado em 2015.

Não tínhamos uma comunidade de rpgistas na cidade (nem lojas vendendo material de RPG) e, além de nos reunirmos em eventos sociais nos quais eventualmente surgia a conversa sobre o jogo e acabássemos falando sobre os feitos de nossos personagens ou algum sistema ou ambientação novos, não costumávamos falar mais nada sobre os jogos.

Em meados de 1997, realizamos o primeiro evento de RPG da cidade, onde expusemos livros, miniaturas e organizamos mesas para conseguir mais jogadores, embora a maioria das mesas tenham sido mesas regulares de grupos que já jogavam juntos. No evento, que aconteceu no segundo piso do local que ainda é chamado Parnamirim Shopping — mas que não lembra muito um shopping center — cheguei a emprestar os meus recém adquiridos livros de AD&D para serem xerocados por um sujeito que nunca tinha visto na vida, mas com o qual joguei por vários anos depois daquele dia.

O evento nos deu uma pequena dimensão dos grupos que jogavam na cidade — não eram poucos — mas de longe eram representativos do todo e isso porque muitas pessoas que eu conhecia e que jogavam preferiram não ir ao evento, argumentando que não gostavam, que achavam os ambientes barulhentos e que preferiam não jogar em público (naquela época gostar dessas coisas era nerdice e ser nerd era estigma, vale lembrar).

Wondering Mosters por Michael Dashow

Depois de organizar muitos eventos e conversar com muitos jogadores, cheguei a conclusão (é importante reforçar que a conclusão é exclusivamente minha), de que muitos grupos de jogo possuíam verdadeira aversão a novos jogadores e a socializações, principalmente àquelas que pudessem gerar interesse de pessoas em, eventualmente, participar daquele grupo.

Esses grupos, formados por pessoas que preferem não se misturar, persistem e se proliferam dentro e fora dos ambientes virtuais, mas ainda fechados em suas bolhas, não permitindo que jogadores, sejam eles veteranos ou novatos, venham a fazer parte de seu grupo. Isso se deve, muito em parte, devido a ideia de que um “elemento estranho” possa trazer um desequilíbrio na força e perturbem a harmonia do grupo, e esse comportamento pode ser responsável pela extinção do grupo que, sem renovação, simplesmente desaparecem na enxurrada de afazeres e rotina do cotidiano.

Os grupos persistentes e nascentes confinam-se em seus espaços privados e seguros, desenvolvendo suas atividades, seja presencialmente (mesmo em tempos de pandemia, vejam vocês), seja virtualmente, em sessões privadas e não disponibilizadas para as massas.

É preciso atentar que o distanciamento social imposto pela pandemia foi responsável pelo (re)descobrimento de muitas formas de entretenimento em muitas famílias, e o RPG foi um deles.

Muitos desses jogadores não consomem RPG via YouTube ou Twitch, nem mesmo sentem interesse em fazer parte de grupos no Facebook ou seguir perfis no Instagram ou Twitter, muito menos começaram a jogar RPG porque assistiram uma sessão do Critical Role, porque a maioria desses jogadores não tem acesso nenhum a língua inglesa.

Esses jogadores estão em uma zona difícil de mapear, são consumidores de RPGs, jogam seus jogos sem se importar com formadores de opinião, influenciadores e até mesmo com o criador do jogo. Se não tem dinheiro para comprar um livro, inventam o seu próprio sistema, com conflitos resolvidos na base da purrinha e se divertem contando histórias fantásticas.

Eles também não dão a mínima para saber se estão jogando certo ou errado — só eles podem definir isso baseado em suas experiências — e entendem que estão jogando certo, pelo simples fato de estarem jogando.

Para eles, o fato de jogarem a Masmorra de Zanzer desde 1993 e de nunca terem ido além do terceiro nível, nunca os impediu de se divertir contando histórias — embora com certeza eles tenham buscado sair da Fortaleza.

A Masmorra de Zanzer. Parte integrante da caixa preta de D&D lançada pela Grow, lançada no Brasil em 1993.

O isolamento e o aprender sozinhos fazem com que esses grupos mantenham a essência das raízes da forma de jogar, que hoje em dia é apenas mais uma forma, dentre inúmeras, que por vezes são taxadas de certas ou erradas.

Acredito que seria muito interessante trazer esses grupos para falar sobre suas experiências, do que gostam, como gostam e, nesse aspecto, as inúmeras comunidades de RPG que existem por aí, principalmente as que ocupam espaços virtuais, precisam ser mais amigáveis e abraçar todas as formas de jogar, abandonando discursos diretos ou velados sobre certo e errado, afinal, RPG é sobre pessoas e diversão.

Conhecer duzentos sistemas não me tornará necessariamente um mestre melhor, embora me permita conhecer mais ferramentas e técnicas empregadas por diferentes sistemas, que podem ser aproveitadas em qualquer mesa para aprimorar a experiência de jogo.

Precisamos aprender a ser pessoas melhores, capazes de entender e acolher diferentes pontos de vista e criar ambientes saudáveis para todos na mesa, ainda mais em tempos de saúde mental fragilizada.

Todas as experiências são válidas. Todas elas podem nos fazer evoluir, desde que ponderemos sobre elas e o fortalecimento de um movimento se dá pela união, afinal, se tem uma máxima que vale para a vida e para o RPG é: nunca divida o grupo.

E vamos jogar RPG!

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Escrito por Franciolli Araújo
Esposo de Paula, pai de Pedro e Nathanael. Professor e pesquisador na área de mineração. Um sujeito indeterminado que gosta de contar histórias e escrever sobre elas e acredita que o RPG é o hobbie perfeito, embora existam controvérsias.