Quando comecei a jogar RPG não tínhamos muitas escolhas além de seguir missões dadas por desconhecidos em uma taverna. As coisas não mudaram muito ao longo dos anos, mas em algumas dessas aventuras começamos a apreciar a paisagem.
Verdade seja dita: muitos grupos preferem sair de um ponto A e chegar ao ponto B rapidamente e sem muito detalhamento, afinal, o que poderia haver de perigoso na estrada? Ou melhor, será que não é melhor ir logo para a ação?
Independentemente do sistema que você esteja jogando, em algum momento de sua carreira de aventureira ou aventureiro, você vai precisar empreender uma jornada, que pode ser até um lixão para enterrar o seu bichinho de estimação ou para um outro plano de existência para salvar todo o multiverso.
“Se a jornada é mais importante do que o destino“, será que isso vale até mesmo para aventuras de RPG? Literalmente?
Na aventura A Bird in the Hand, saiba mais no artigo Hexcrawl para Mythras, o autor diz em um trecho:
Não se atravessa montanhas e rios facilmente. Para atravessar uma montanha, use uma passagem conhecida ou encontre uma; escalar uma montanha deve ser tratada como uma aventura completa, não apenas com algumas jogadas de perícias (…)
– Tradução livre
Para alcançar o templo dos monges alienígenas – que na verdade é uma nave Spelljammer – no pico da montanha, primeiro é preciso chegar lá, logo, a jornada faz parte do desafio.
Procedimentos
As diferentes edições de D&D abordam as viagens de forma ligeiramente diferente e em parte, acredito, isso se deve a importância que a edição dá, ou melhor, ao foco que ela dá a esse aspecto do jogo. E não, eu não vou discorrer aqui sobre como cada uma das diferentes edições tratam viagens, vou apenas fazer uma rápida comparação entre duas (ou três) interações.
No Rules Cyclopedia (1991) temos muitas referências a palavra travel, seja referindo-se às denominações dos personagens, que podem não se interessar por criar fortalezes, guildas etc. quando chegam ao nono nível e passam a ser errantes, seja a equipamentos específicos para viagens (roupas, rações, calçados, animais, equipamentos etc.) por terra e água, incluindo também embarcações.
A viagem é feita de forma procedural (ou seja, existe um procedimento), com uma lista de ações que devem ser observadas, como mostrado a seguir em uma tradução livre do Checklist Diário (p. 91).
1. Amanhecer: o grupo se prepara para a viagem, estuda magias, seleciona a direção da viagem.
2. Se perdendo: o mestre joga 1d6 para ver se o grupo se perdeu. Se sim, consulte a seção “Viagem Terrestre” no Capítulo 6.
3. Monstros errantes diurnos: o mestre joga 1d6 para determinar encontros com monstros errantes no período diurno. Consulte a Tabela de Chances de Encontro para determinar os resultados.
4. Resultado dos encontros: baseado no resultado da jogada do mestre, o grupo faz o seguinte:
a. Se monstros errantes não são encontrados, o grupo conclui o seu movimento e o período diurno termina. Siga para a Etapa 6.
b. Se monstros errantes são encontrados, o mestre segue para o Checklist de Encontro, abaixo. Se o grupo quiser fugir ou perseguir os monstros encontrados, o mestre segue para a seção “Fugir e Perseguir” mais à frente neste capítulo.
5. Retomar a viagem: após o encontro, o grupo pode retomar a viagem. Se eles estiverem perdidos, o mestre pode (à sua escolha) refazer a jogada para determinar a direção da viagem.
6. Anoitecer: o grupo encontra um local para parar e descansar.
7. Monstros errantes noturnos: o mestre faz uma jogada usando 1d12 para determinar encontros com monstros errantes no período noturno. Consulte a Tabela de Chances de Encontro para determinar os resultados. Se um encontro é indicado, o mestre determina o turno durante o qual ele acontece; dois ou três personagens dos jogadores podem fazer a guarda durante a noite, cada qual ficando uma mesma quantidade de tempo guardando o grupo. Continue com uma das seguintes etapas:
a. Se um encontro acontece, o mestre usa o Checklist de Encontro abaixo.
b. Se nenhum encontro acontecer, o mestre continua para a Etapa 9.
8. Retomar o descanso: uma vez que qualquer encontro noturno seja resolvido, o grupo pode retomar o descanso.
9. Fim da noite: retorne a Etapa 1.
Seguindo o mesmo modelo do Rules Cyclopedia, mas com uma pegada mais atualizada (alguns diriam modernizada), embora mantenha os mesmos conceitos gerais, o Old School Essentials (confira a tradução de boa parte do SRD aqui) reduz de nove para cinco etapas, condensando ou removendo o óbvio (retomar viagem e retomar descanso) e a remoção do anoitecer e determinação dos encontros noturnos.
Na quinta edição (como algumas pessoas gostam de dizer também “vamos deixar de falar em velharia”) as informações sobre viagem são muito menos procedurais e um parágrafo específico me chama muito a atenção no que tange a viagens, que traduzo abaixo (eu não tenho os livros traduzidos da Galápagos, ok?)
(…) o mestre pode resumir o movimento dos aventureiros sem calcular distâncias exatas ou tempo de viagem: “vocês viajam através da floresta e encontram a entrada da masmorra no final da tarde do terceiro dia (…)
– Tradução livre. PHB (181)
Ainda bem que o Dungeon Master Guide apresenta algumas opções para quem quer aventurar-se levando essas aspectos em consideração, mas diferente do Rules Cyclopedia, no DMG 5E você não vai encontrar um checklist, o que faz com que uma boa parte do que pode acontecer fuja de um procedimento mais óbvio. Ele ainda existe, só não está descrito na forma de um checklist.
Se perdendo
Se você quer viajar em relativa segurança, o faça em uma estrada, trilha, seguindo o curso de um rio. Caso não conheça a região e precise se afastar desses marcos citados anteriormente, certifique-se de ter a ajuda de um guia confiável, caso contrário as coisas podem desandar rapidamente.
Usar marcos geográficos que possam ser vistos à distância pode ajudar, mas perder esse marco de vista também pode complicar rapidamente a situação do grupo.
Pelas regras do Rules Cyclopedia, quando um grupo se aventura longe de estradas, trilhas e cursos de rio, o mestre joga 1d6 a cada dia para determinar se os personagens se perdem ou não, permitindo, caso as regras opcionais de perícias gerais estejam em uso, que o personagem faça um teste de Navegação/Conhecimento (da área em questão) para manter o grupo no caminho certo.
Caso o número obtido iguale o número listado, o grupo se perde:
- Áreas desobstruídas ou prados: 1
- Pântano, selvas ou deserto: 1-3
- Todos os outros terrenos: 1-2
Na minha opinião, 17% de chance (1 em 1d6) de se perder em uma pradaria ainda é uma chance alta, ainda mais se você tem a possibilidade de avistar alguns marcos geográficos a distância, que possam ajudá-lo a se guiar.
Se o grupo se perder, a direção que eles podem seguir pode ser determinada pelo mestre ou de forma aleatória e o mestre tem que manter registro da direção que os personagens estão indo e da direção que eles desejam ir.
Em D&D 5E a descrição das condições que podem levar o grupo a se perder é bem vaga e é apresentada na página 111 do Dungeon Master Guide:
A menos que eles estejam seguindo um caminho, ou algo parecido, aventureiros viajando por regiões selvagens correm o risco de se perder (…)
– Tradução livre
O personagem que assume o papel de navegador do grupo faz um teste de Sabedoria (Sobrevivência) quando o mestre achar que for apropriado e a dificuldade do teste dependerá do terreno, como mostra a tabela abaixo. Além disso, as jogadas podem receber um bônus de +5 se estiverem movimentando-se em ritmo lento ou uma penalidade de -5 se estiverem em ritmo acelerado. Se tiverem um mapa detalhado ou possam ver o sol ou as estrelas, o navegador ainda faz o teste com vantagem.
- Floresta, selva, pântano, montanhas ou mar aberto com céu nublado e sem terra a vista – CD 15
- Ártico, deserto, colinas ou mar aberto com céu limpo e sem terra à vista – CD 10
- Prados, pradarias, áreas de cultivo – CD 5
Se a jogada de Sabedoria (Sobrevivência) for bem sucedida, o grupo viaja no rumo correto sem se perder, caso contrário eles se perdem e podem fazer o teste novamente após 1d6 horas.
Supondo que no referido grupo tenha um Ranger com +4 em Sobrevivência. que seja o navegador e o grupo está se deslocando por uma floresta. No pior cenário (CD 15), o grupo teria as seguintes chances de se perder:
- Seguindo com ritmo acelerado: 75%
- Seguindo com ritmo normal: 50%
- Seguindo em ritmo lento: 25%
- Seguindo em ritmo lento com um mapa detalhado, vendo o sol ou as estrelas: 13%
Se compararmos as chances de se perder entre o apresentado no Rules Cyclopedia e o D&D 5E é possível ver, do ponto de vista das probabilidades, que se perder na 5E é ligeiramente mais difícil SE o grupo tomar algumas precauções. Essa granularidade não está presente nas regras apresentadas no Rules, e dependerá exclusivamente da arbitragem do mestre.
Descanso
Se você já viajou alguma vez na sua vida, sabe que toda viagem é cansativa, independente do meio que utilize para deslocar-se de um ponto a outro. Se precisar dormir durante a viagem, então ferrou.
Se descansar tendo o céu como teto, o medo de que animais menores (cobras, escorpiões etc) ou maiores (lobos, onças etc) o ataquem o deixará em estado constante de alerta. O descanso não vai render.
Se descansar dentro de uma barraca, a preocupação com os animais menores pode deixar de existir, mas ainda existe a preocupação com animais maiores e sem contar que, assim como no primeiro caso, você estará dormindo no chão ou sobre um cobertor e se conseguir dormir bem, provavelmente vai acordar moído.
Se encontrar uma hospedaria, sob um teto seguro, suas preocupações com animais pode deixar de existir, você poderá até dormir em um local mais confortável, mas dependendo do lugar, ainda temerá ser assaltado, o colchão se houver será diferente do seu (ao qual você está acostumado) e alguns inconvenientes como mofo e mau cheiro podem ser empecilhos para aquela noite de sono relaxante.
No Rules Cyclopedia (p. 89) temos um parágrafo que diz:
Personagens e montarias devem descansar um dia completo para cada seis dias que gastem viajando. Aqueles que não descansarem sofrem uma penalidade de -1 nas jogadas de ataque e dano até que descansem. Se eles seguirem por mais de seis dias sem descansar, sofrem uma penalidade adicional de -1 para cada seis dias completos sem descanso (…) tendo que descansar um dia completo para cada seis dias que passaram viajando.
– Tradução livre
Isso quer dizer que as penalidades vem, mas elas vem em um ritmo muito lento. Somente se você passar muito tempo na estrada que vai começar a sentir os efeitos desse cansaço.
A recuperação natural de pontos de vida não aparece no texto do Rules Cyclopedia, mas considerando que ao utilizar a perícia Cura é possível restaurar 1d3 pontos de vida de uma criatura ferida, assumir que um personagem recupera 1 ponto de vida por descanso me parece razoável.
Contudo, isso também quer dizer que os personagens não sofrem penalidades em sua recuperação ao viajar.
Em D&D 5E, os pontos de vida são recuperados pelo gasto de Dados de Vida (jogando os respectivos dados e somando aos pontos de vida atuais até o limite) em um descanso curto (pelo menos uma hora de descanso) ou todos os pontos de vida E dados de vida depois de um descanso longo (pelo menos oito horas).
O interessante é que nenhuma das abordagens leva em consideração as agruras da viagem. É como se sempre que viajamos, mesmo ficando nas condições mais hostis, o descanso é certo e a recuperação total. Mas aí vem a melhor abordagem (na minha opinião) para o descanso entre viagens para o D&D 5E, apresentado no Adventures in Middle-Earth: Loremaster’s Guide:
DESCANSOS
Descansos em Adventures in Middle-Earth funcionam da mesma forma que nas regras básicas, com uma exceção: durante jornadas, quando os heróis jogadores não podem realizar um descanso longo (…)
Um descanso longo pode ser uma coisa confusa de definir para o mestre. Você pode definir que apenas uma noite em uma cama, em um local seguro pode permitir um descanso longo. Uma interpretação mais generosa requer que alguns requerimentos sejam cumpridos para que o grupo desfrute de um descanso longo (…).
– Tradução livre
Em um outro trecho do mesmo livro temos:
(…) Enquanto estiver na estrada, os personagens só podem realizar descansos cursos. Os descansos longos só estão disponíveis como parte de um evento bem sucedido na jornada ou a critério do mestre que decidirá quando ele for importante (…)
– Tradução livre
Sem dúvida alguma eu utilizaria essa regra ao mestrar D&D 5E, simulando bem a forma como as viagens podem ser desgastantes e fazendo com que os aventureiros tenham que considerar muito bem o planejamento de suas viagens.
Viagens normais precisam ser consideradas com cuidado, viagens por regiões selvagens, ainda mais aquelas que tem o potencial de durar muito, devem ser consideradas com mais cautela ainda.
Como vocês lidam com viagens em suas aventuras/campanhas? A jornada é mais importante que o destino? Gostam de mestrar todo o caminho? Utilizam regras específicas? Alguma regra da casa?
Deixe um comentário abaixo relatando suas experiências.
Bom dia, professor!
Artigo interessantíssimo! Mas as chances de 1 em 6 não seriam de quase 17%, em vez dos referidos 33%?
Salve, salve, Melgalian.
Muito obrigado pelo comentário e pela pela correção. De fato a estatística estava errada e já corrigi.
Forte abraço.
Permita-me complementar aqui meu comentário anterior, professor. A cabeça está meio avoada e acabei esquecendo.
Como postas, as regras de viagem do Adventures in the Middle Earth são bem mais interessantes que as dos livros básicos de regras, mas ainda assim considero as regras de viagem do Sistema d20 (em seus livros básicos, quero dizer), em todas as edições, insatisfatórias para um jogo cujas aventuras se fundamentam na jornada para territórios estranhos. Há que se dizer também que o AitME são adaptações (e reduções) das regras de viagem do The One Ring RPG (em minha humilde opinião, o melhor sistema para ambientar aventura na Terra Média tolkieniana —em contrapartida à Terra Média de Shadows of Mordor, por exemplo).
O que faço quanto às viagens no meu jogo? Depende de quem está jogando: com os(as) jogadores(as) que aprenderam a jogar comigo, faço uma aventura à parte para a viagem. É uma aventura para chegar na aventura. Para outros(as) jogadores(as), uso a abordagem do Dungeon World, às vezes do Savage World: corta-se a maior parte, resume-se a alguns testes e parte-se direto para a aventura de fato (aquela que estava acertada desde o princípio), às vezes se coloca uma cena de Vazio (o “Ma” japonês, usado pelo Hayao Miyazaki) no meio, mas nem sempre.
Perdoe o falatório, mas tenho debatido essa temática recentemente e acabo me empolgando.
Abraço!
Que bom que retornou ao comentário.
No geral, o trabalho feito no AitME é muito bom, superando as regras – por torná-las mais especificas – dos módulos básicos, e isso no sentido de termos uma regra adaptada ao cenário e não o contrário ou uma generalização, que são apresentadas nos módulos básicos.
Infelizmente eu não conheço as regras para viagem do The One Ring, mas vou me inteirar.
Sua abordagem é perfeita. A forma como mestramos deve se adequar ao público para o qual mestramos. Existem aqueles grupos que gostam dos aspectos de viagem, existem grupos que preferem pular direto para a aventura e inclusive utilizar outras abordagens. Como mestres, precisamos estar atentos(as) a isso, para nos divertirmos junto com os demais jogadores.
Todos os jeitos estão certos.
Viagem é um elemento que me interessa muito em jogos de fantasia. Sempre foi um dos atrativos nesse tipo de jogo, conhecer a história e geografia dos mundos fantásticos. Matéria interessante!
Boa tarde, Mike! Teria a bondade de me responder algumas perguntas? Quais os sistemas que você joga? E qual lhe atende melhor no quesito viagem (e porque)?
Melgalian, na real os jogos que costumo jogar ou que gosto não são otimizados para esse tipo de experiência… Geralmente esses elementos surgem mais por conta da vibe que o grupo curte do que do sistema de regras sendo usado. Sei que existem alguns sistemas com mecânicas específicas voltadas para estes aspectos do jogo, mas ainda não tive oportunidade de jogá-los.