Nos últimos meses, afastado das mesas de RPG, me dediquei a uma série de jogos de vídeo game que estavam na minha lista há anos.
O amigo Allan Meira, me convenceu a experimentar Bloodborne, e em julho de 2018, com minha esposa e filhos viajando, me dediquei com o afinco de um fanático. Antes do fim do mês, eu já havia eliminado todos os preconceitos que tinha contra a série. Seguiram-se então o Dark Souls Remastered, Dark Souls II e por último, finalizado no mês passado, o Dark Souls III.
Impossível não pensar, enquanto jogava, como seria a experiência de jogar a série em um RPG de mesa. Procurei indicações com amigos, e fiz a minha própria busca.
A primeira indicação de um RPG baseado no cenário foi do Pedro Leone, que me indicou o The Cold Ruins of Lastlife, escrito por Brendan Conway, baseado no sistema Dungeon World.
Minhas buscas me levaram a uma versão não oficial, escrita por Emanuele Galletto (RoosterEma no reddit), que utiliza exclusivamente dados de seis lados e traz alguns elementos que me lembram alguns jogos como Shadow of the Demon Lord, Dungeon World e Zweihänder da Grim and Perilous, embora eu não possa afirmar que a autora tenha bebido em nenhuma dessas fontes para a adaptação de seu jogo.
Com esses dois sistemas em mãos, percebi que eu não queria um sistema de regras, o que eu queria era entender a pegada do jogo, e como ele poderia se relacionar com os RPGs tradicionais que já conhecia. Infelizmente, a quantidade dessas análises em português é muito pequena.
Encontrei algumas considerações e adaptações de Dark Souls para RPG nos blogs Nemenomicon, RPG Next, Joga o d20 e Segredos de Alancia, sendo aquele escrito pelo Fabiano Neme (Nemenomicon), o que me chamou mais atenção, por ir direto ao ponto ao fazer uma analogia entre elementos de Dark Souls e do D&D Old School.
Exploração, combate e gerenciamente de recursos.
Dark Souls é um jogo de exploração, onde a personagem vai conhecendo o mundo através da interação com o cenário, com os NPCs e itens que vai juntando ao longo de sua jornada. O passado da personagem é irrelevante. Apenas o que está à sua frente pode lhe fornecer pistas sobre o que ele é, e poderá vir a ser.
O combate possui um forte papel na trama. Alguns chefes de área são opcionais, outros não, e não tem outra forma de sobrepujá-los e avançar para algumas áreas senão através do combate. Contudo, combater e abater todos os inimigos de uma área não é a única tática possível. Algumas vezes, é mais sábio atravessar áreas inteiras correndo, evitando inimigos, do que combatê-los diretamente.
Você poderá até não ganhar almas que o ajudarão a melhorar seus equipamentos e subir de nível, mas poderá sobreviver.
O jogo também é sobre gerenciamento de recursos. Entrar em muitas batalhas poderá fazer com que os seus Frascos de Estus (poções de cura) se esgotem rapidamente, e nem sempre você conseguirá chegar a uma fogueira para descansar e recuperá-los. Da mesma forma, alguns itens são importantes para melhorar as armas temporariamente, explorando as fraquezas dos inimigos. Sem estes itens, as batalhas tendem a ficar um pouco mais complicadas.
Um jogo onde a habilidade que importa é do jogador, não da personagem
Essa frase soa familiar para os jogadores de sistemas de RPG old school. Nestes sistemas, não importa se o seu personagem tem Inteligência 6 ou 18. Diante de um enigma, é a habilidade do jogador que determinará se ele será bem ou mal sucedido, não uma jogada de dados, que somado a um modificador deverá bater uma classe de dificuldade pré-estabelecida.
Em Dark Souls, é possível finalizá-lo sem sofrer um único dano dos inimigos (The Happy Hob), assim como também sem aumentar nenhum nível (SquillaKilla), tudo uma questão de habilidade do jogador, mas é claro que o jogo também tem espaço para explorar todo o potencial de poder do jogo (Fighter .PL), sendo somente uma questão de gosto.
A possibilidade de jogar uma campanha de RPG em um passo mais lento, evoluindo mais lentamente, sempre me agradou. Primeiro por permitir que eu conhecesse bem as habilidades de minhas personagens, e quando atuando como mestre, permitindo que muitas aventuras pudessem ser narradas para o mesmo grupo, em uma mesma faixa de nível, explorando as mais variadas oportunidades de evolução, do jogador, não da personagem.
Outra fator interessante, que me fascina na série Souls e que guarda fortes similaridades com o old shool, é o fato de que não existem encontros equilibrados. Se um adversário parecer forte demais para a personagem, ou o grupo, pense em uma tática e faça ela funcionar, caso contrário, você verá com frequencia a frase mais icônica do jogo:
Salve Franciolli! Bom ver que você retornou à forma RPGística! Quem sabe um dia eu consiga voltar também. Por enquanto é só um sonho…
Sobre o assunto do post, uma adaptação de Dark Souls para o RPG de mesa me parece algo bem complicado. Ainda que muita coisa do DS tenha paralelos com o D&D, como o excelente artigo do Fabiano Neme menciona, eu acho que a linha é um pouco tênue.
Para minha análise eu vou deixar de lado a ambientação e o storytelling da série, me focando apenas em mecânicas e design. A primeira vista, parece que o mapa está completamente aberto e que você é quem tem que fazer o seu caminho. No entanto, se você prestar mais atenção, vai reparar no design extremamente cuidadoso que cada área do jogo recebe. A dificuldade dos monstros é cuidadosamente planejada, com áreas obviamente mais fáceis que outras, com obstáculos que vão crescendo de dificuldade e que sempre se reinventam para pegar você de surpresa justamente quando você acha que está se acostumando. Os monstros no geral são extremamente fortes, mas também são previsíveis. A emoção está na exploração inicial deste mapa extremamente bem feito juntamente com as armadilhas e inimigos cuidadosamente colocados. A primeira vez que você chega em uma área você vai nas pontas dos pés, prestando imensa atenção, olhando para cada canto da tela.
Isso funciona no Dark Souls por causa de seu feedback loop. Você faz algo, erra, e imediatamente volta para um ponto não muito longe anterior, pronto para tentar novamente. O fato de você perder as almas que tinha e ter que recuperá-las coloca mais um elemento interessante nesse feedback loop, a boa e velha ideia de risk x reward.
O ponto central é que o Dark Souls é um jogo que você aprende. Aprende como os inimigos se comportam, aprende o design dos cenários, os tipos de armadilha. E você aprende isso fazendo erros e tentando novamente. Pra mim isso ficou bem claro quando estava jogando Bloodborne. Eu devo ter levado umas 30 ou 40 tentativas logo no primeiro chefe, o Padre Gascoine. Mas depois que eu entendi como o jogo funcionava de fato, foram só mais uma ou duas tentativas. E esse conhecimento que tive que adquirir para superar este chefe foi útil em todo o jogo seguinte.
Como adaptar isso em um RPG? Toda esta mecânica de aprendizado, de entender como enfrentar melhor os inimigos, já é abstraído em níveis, bônus e etc. Se você juntar inimigos e armadilhas mortíferas nesta abstração, os personagens não vão ter nenhuma chance de aprender. Vão morrer imediatamente, e a única coisa que o jogador vai aprender é a ser mais cuidadoso – coisa que os jogadores de oldschool já são em demasia. Mas Dark Souls não é unicamente sobre ser cuidadoso. Este feedback loop te ensina a fazer as coisas do jeito certo, a entender os inimigos e os mapas de maneira que você não precisa mais ser cuidadoso – você sabe como eles funcionam, sabe lidar com eles, e deu um “level up” como jogador. Este “level up” se traduz em uma capacidade mecânica que não é facilmente traduzida para um RPG de mesa – como rolar, que hora levantar o escudo, que arma funciona melhor para aquele tipo de inimigo, quanto tempo esperar para atravessar aquele corredor, etc.
Pegue por exemplo talvez minha parte favorita de todos os Dark Souls: Sen’s Fortress. Imagine navegar aquele labirinto perigosíssimo em RPG Old School. Posso estar errado em minhas ideias de como um RPG oldschool se joga, mas eu imagindo que seria terrivelmente entediante ter que ficar indo a cada 2 metros do mapa checando cada buraco por lâminas, para logo depois ver seu personagem de meses ser esmagado por uma rocha enquanto você foge de um feiticeiro. No Dark Souls funciona pq logo depois disso você volta para o lugar e já sabe onde tem as lâminas, já sabe que tem um feiticeiro no escuro à sua direita assim que você atravessar aquela ponte. Mas em um RPG isso seria extremamente injusto.
Esses são meus dois centavos. Um grande abraço!
Esse seu comentário poderia ser um novo artigo. Vou continuar instigando.
Concordo com absolutamente tudo que pontuastes.
Acho que é a saudade de jogar RPG, acabei escrevendo mais do que eu deveria 🙂
Discordo do “escrevi mais do que deveria”. Está escrevendo pouco.
Seus textos são sempre um deleite para o leitor.