Lendo o Mountain Witch hoje, me deparei com uma teoria que eu não conhecia, mas que achei extremamente pertinente. O nome original dela é “Fortune-in-the-Middle“, que traduzi meio que literalmente para sorte-no-meio. Mas o que vem a ser isso?
Primeiro, um pouco de teoria básica. De acordo com a teoria da Forge (chamada de Big Model ou GNS, tanto faz), existem três mecânicas de resolução:
- Drama, onde apenas frases são utilizadas como mecânica (“Você pula o buraco”)
- Karma, onde valores comparativos são utilizados como mecânica (“Você tem Saltar 10 e o buraco tem dificuldade 8, logo você passa”)
- Sorte (fortune), onde um fator aleatório é utilizado como mecânica (“Você tirou 7 no teste e pulou o buraco”)
Tudo isso para explicar de onde vem o “Sorte” do “Sorte-no-Meio”. A maneira tradicional de resolução de testes, o Sorte-no-Fim, envolve os seguintes passos:
- O jogador diz o que ele quer fazer na ficção, descrevendo o que ele está fazendo
- O mestre determina uma dificuldade (ou rola os dados para o adversario para determinar a dif)
- O resultado diz se ele consegue ou não fazer o que ele estava querendo
Compare isso com o método de resolução de Sorte-no-Meio
- O jogador determina a intenção dele na ficção, o que ele quer fazer
- O mestre determina uma dificuldade (ou rola os dados para o adversario para determinar a dif)
- Através do resultado, o mestre e o jogador determinam retroativamente o que aconteceu na narrativa.
Ambos os métodos parecem muito parecidos, então o que tem de diferente? Em um teste normal de sorte-no-fim, você determina o que quer fazer e a mecânica serve como um “simulador de física” para dizer o que aconteceu. Sua declaração permanece, o resultado do teste determina apenas o final.
Por outro lado, o método sorte-no-meio, você determina o que quer fazer, porém ela só irá acontecer de fato depois que os dados forem rolados – ela é alterada retroativamente pelo resultado da jogada.
A diferença parece ser pequena, mas apenas utilizando a “sorte-no-meio” é possível realizar certos efeitos na ficção, como trazer consequências e efeitos para a narrativa que não derivam diretamente da declaração do jogador, e tudo isso utilizando como base o resultado do teste. Os dois métodos não são completamente exclusivos – é possível que você utilize os dois métodos na sua mesa, sem saber. Isso também não é específico de sistema, embora os sistemas narrativos – os story-games – funcionem majoritariamente com a sorte-no-meio.
Atualização: O pessoal me pediu exemplos para entender melhor a diferença, então aqui vai um exemplo.
Situação
Um personagem jogador elfo, interpretado por Bob, está fugindo de um grupo de vis e grotescos orcs, quando ele se depara com uma fenda no meio do caminho. Não existe tempo para procurar outro caminho, ele precisa pular ou enfrentar os orcs.
Técnica Sorte-no-fim
Bob: Ok, eu quero pular esse buraco. Eu tenho +2 na perícia Saltar, e minha força ajuda com +1. Contando com isso, eu estou pegando impulso por mais de 3 metros, o que me daria mais um bônus de +1.
GM: Certo, a dificuldade do teste é 10 devido ao tamanho do buraco.
Bob: Rolei 5 no dado, somando com os bônus de +4, dá 9. Não consegui passar.
GM: Ok, então acontece o seguinte: Você pega impulso correndo, tenta pular a fenda, mas não foi o suficiente: vc nao consegue alcançar o outro lado e cai no buraco! Tome dano equivalente a uma queda de 5 metros.
Técnica Sorte-no-meio
Bob: Ok, eu preciso pular este buraco para conseguir fugir dos orcs. Essa é minha intenção. Eu vou tentar fazer isso pulando o buraco, obviamente. Meus bônus para fazer isso somam +4.
GM: Certo, a dificuldade do teste é 10 devido ao tamanho do buraco.
Bob: Rolei 5 no dado, somando com os bônus de +4, dá 9. Não consegui passar.
GM: Ok, então acontece o seguinte: Você vai tentar pular o buraco, tentando pegar impulso, mas quando você começa a correr e está prestes a pular, você sente um puxão na sua roupa: um orc já alcançou você e o segura antes que você consiga saltar.
Diferença
Repare que o resultado final da técnica sorte-no-fim foi uma consequência natural da declaração da ação do jogador, enquanto na técnica sorte-no-meio, ele nem chegou a saltar. A diferença principal entre os dois métodos é que utilizando a sorte-no-meio, o GM alterou retroativamente a declaração do jogador a partir do resultado – o fracasso não foi resultado direto da falha na tarefa.
Em muitos sistemas, como por exemplo o próprio D&D, rolagens diferentes seguem técnicas diferentes. Por exemplo, uma jogada de ataque e dano normalmente segue o método de sorte-no-meio, pois você só irá saber que parte do inimigo você acertou e que tipo de ferimento causou após a rolagem dos dados, sendo então mais prático deixar para narrar o resultado somente após jogar os dados. No entanto, testes de perícia seguem estritamente o método de sorte-no-fim.
No exemplo de sorte-no-meio deixei claro também algo que muitos RPGs narrativos como Burning Wheel, Este Corpo Mortal, ou mesmo o próprio Mountain Witch fazem, que é a separação entre a intenção e a tarefa. Você primeiro declara o que você quer fazer, qual seu objetivo, para só então dizer como pretende fazer isso. O “como” irá definir o tipo de teste e a dificuldade que você terá, porém o GM irá utilizar sua intenção para julgar as dificuldades e também o fracasso. No segundo exemplo, a intenção do jogador era fugir dos orcs, e a tarefa era fazer isso pulando a fenda. O GM interpretou o fracasso simplesmente como ele não conseguindo fazer o salto a tempo, ainda que o jogador tenha feito o teste para saltar.
Espero que agora tenha ficado claro qual a diferença entre as duas técnicas e por que o método da sorte-no-meio pode ser benéfico para a narrativa e para seu jogo.
Interessante a idéia. Na minha opinião, deveria ser uma DC de 10+2 pelo orc tentando agarrar o personagem. Assim ativamente o orc estaria aumentando a dificuldade. Da forma de sorte no meio, a dificuldade 10 é para saltar o buraco sem a influência dos orcs, e, em um jogo simulacionista, para mim fica ‘estranho’
Você tocou em um ponto interessante que eu esqueci de comentar. Sorte-no-meio definitivamente não funciona em jogos simulacionistas. É uma afronta ao jogador que tem como objetivo um jogo simulacionista ter um mestre que introduz elementos que não tem a ver com o teste.Neste caso, aumentar a dificuldade pelo orc estar segurando o personagem faz todo sentido. Mas no segundo exemplo, isso não estava estabelecido: foi criado exclusivamente após o resultado do teste. Se ele tivesse passado no teste, ele teria saltado antes de qualquer orc conseguisse se aproximar o suficiente dele.
Muito massa o post Pedro.Em alguns momentos, entender determinados conceitos de jogo realmente tornam o jogo melhor.A sorte-no-meio realmente tem um potencial maior para colaboração da narrativa compartilhada (acredito), principalmente quando a consequência da falha é deixada a cargo do jogador para narrar.Abraços.