O leão e o dragão

Há alguns anos eu venho buscando sistemas de RPG que me proporcionem uma experiência diferenciada, sem o super heroísmo comum aos sistemas mais modernos. Esta busca me levou a conhecer o Lion & Dragon, publicado pela DOM Publishing e comercializada pela DriveThruRPG, Lulu e Amazon.


A proposta

Lion & Dragon se propõe a ser um RPG old school, que entrega uma experiência medieval autêntica. Para isso, existem algumas premissas que devem ser observadas e respeitadas:

  • O status social é extremamente importante
  • Monoteísmo
  • A vida vale pouco
  • A magia é rara
  • Civilização é sobrevivência


O status social é extremamente importante: Todos os membros da sociedade ocupam posições de acordo com o seu nascimento. Aqueles que nascem em posições mais elevadas são abençoados pelo deus único e tem responsabilidades para com aqueles que não tiveram a mesma sorte. Os mais abastados devem ser tratados com reverência por cidadãos de classes inferiores.

Monoteísmo: Existe apenas uma divindade toda poderosa, e todas as criaturas do caos são consideradas ameaças reais a humanidade e a criação. Elfos e demônios, por exemplo, são hostis aos seres humanos.

A vida vale pouco: Altas taxas de mortalidade infantil, aliadas a guerras e pragas, fazem com que a vida seja menos do que um sopro e não existem magias de ressurreição e similares. Todo cuidado é pouco, pois até mesmo uma infecção pode derrotar o mais destemido guerreiro.

A magia é rara: Não existem lojas de itens mágicos e a magia funciona de forma diferente. Além disso, somente aqueles muito experientes ou sortudos, conseguem colocar suas mãos em algum item mágico de poder significativo.

Civilização é sobrevivência: Somente os tolos ou desesperados se afastam dos locais protegidos pelo Rei ou pela Igreja. Embora crimes existam e bandidos assolem as estradas, essa relativa paz e segurança é bem melhor do que as incertezas do que pode ser encontrado nas profundezas de florestas e cavernas. Quando guerras civis explodem, trazendo elementos do caos, os mortos insepultos se levantam, cultos demoníacos florescem e criaturas que antes não ousavam sair de seus lares nas profundezas aproximam-se dos locais civilizados para atormentar e destruir.

Elementos diferenciatórios

Criação de personagens

Além das premissas básicas, algumas alterações no sistema de criação e evolução dos personagens, ajudam a dar o tom de uma experiência medieval autêntica, segundo o autor.

Os personagens são humanos, com variações étnicas que permitem acessar, opcionalmente, outras classes que não as clássicas (clérigo, guerreiro, ladrão ou usuário de magia), como o bárbaro ou uma espécie de faz tudo.

As classes clássicas só podem ser escolhidas se o personagem possuir um valor mínimo de atributo, enquanto classes como bárbaro e faz tudo, exigem também que o personagem pertença a uma etnia específica. O faz tudo, por exemplo, tem que ter Carisma 9 ou mais, e pertencer a etnia Cymri.

A classe social vai definir a quantidade de recursos iniciais, além de um conjunto de itens iniciais. Todos os personagens começam com uma adaga, mas todo personagem pertencente as classes nobres e alta aristocracia, começam também com uma espada e um cavalo, além de, é claro, uma quantia em recursos absurdamente maior do que um ex-escravo.

Os personagens começam no nível zero

Todos os personagens começam em nível zero, com 1d6 pontos de vida, conhecendo alguns idiomas dependendo de seu valor de Inteligência, com bônus de combate igual aos seus modificadores de Força e Destreza, para ataques corpo a corpo e a distância, respectivamente, e um valor básico de teste de resistência modificado pelo seu Carisma e que também pode ser modificado por sua etnia.

Para alcançar o primeiro nível e começar a avançar na classe, os personagens precisam sobreviver a uma aventura completa, que cabe ao mestre determinar o que isso significa.

Quando o personagem sobrevive a sua primeira aventura completa, ele começa a sua jornada na classe escolhida, ganhando um dado de vida correspondente a classe, mais modificador de constituição, bônus de combate, bônus nos testes de resistência e algumas habilidades especiais. Quando ganha o seu primeiro nível, o jogador deve jogar duas vezes em uma tabela de benefícios para determinar o que o personagem ganha, podendo escolher uma das habilidades, ao invés de jogar duas vezes, caso deseje.

Dessa forma é possível criar personagens muito diferentes em termos de habilidades, sem a utilização de elementos que tornem o personagem mais complexo do ponto de vista das mecânicas, mantendo a simplicidade e ao mesmo tempo possibilitando a existência de personagens completamente diferentes.

As magias funcionam como poderes, não sendo utilizado o Sistema Vanciano. Clérigos, por exemplo, tem em sua lista de milagres: Abençoar, Inspiração Divina, Luz Sagrada, Arma Sagrada, Imposição das Mãos, Santuário, Afastar Mortos-Vivos e Visões. Já os magos, além de dominar campos de conhecimento, como os Maesters da Cidade Velha, tem a disposição os poderes: Astrologia, Curas, Banimento, Magia de Batalha, Talismãs Astrológicos e Alquimia Verdadeira.

Evocando demônios

A evocação de demônios representa um aspecto muito interessante do cenário, sendo possível ser realizada por personagens de qualquer classe, desde que tenham as ferramentas corretas e tenham estudado o ritual adequado. Magos e Cymri tem mais facilidade em realizar a tarefa, inclusive com menores chances da coisa toda descambar para um desastre.

O procedimento para a evocação, pode requerer alguns sacrifícios. Alguns não são necessariamente maus, mas sacrificar seres inteligentes para reduzir a dificuldade e tentar evocar demônios mais poderosos, pode causar a mudança de tendência. Além disso, será necessário subjugar o demônio para que ele realizar certas tarefas, outra tarefa perigosa se o demônio for muito poderoso.

Habilidades Mágicas

Astrologia: permite aos magos observar as estrelas e predizer o futuro. Quando mais precisa a previsão, maior será a dificuldade, e mesmo assim, o futuro pode ser mudado.

Cura: a cura é um conjunto de habilidades que são adquiridas separadamente. Elas permitem curar doenças, pontos de vida (acelerando a recuperação natural), infecções, loucura, cegueira, e fome.

Banimento: permite que sejam criadas proteções em uma área da influência mágica de certas criaturas sobrenaturais. Com esta habilidade é possível criar um círculo de banimento, gesticular para provocar um banimento, ou ainda criar um santuário mágico para o mago.

Magia de batalha: essa habilidade permite criar alguns efeitos interessantes e úteis em combate, mas talvez não diretamente, como criar uma varinha, bastão ou cajado de energia, que causa dano quando toca um adversário (recarregar requer a perda permanente de 1 ponto de Constituição do mago e um ritual realizado durante uma tempestade), criar um pão que quando consumido, concede bônus em testes de resistência e torna os ataques contra ele menos eficientes. O usuário ainda pode ficar invisível, fechar ou abrir uma fechadura, provocar terremotos, ou amaldiçoar alguém para que tenha má sorte.

Talismãs astrológicos: permite criar amuletos e talismãs mágicos, com efeitos que dependem da inteligência planetária que ele deseja infundir no objeto, como por exemplo, ganhar bônus em perícias, reagir mais rapidamente, ser mais preciso em combate, mas cada um desses efeitos traz junto um efeito negativo.

Alquimia verdadeira: é dividida em alquimia menor e maior. Com a alquimia menor é possível criar uma lanterna que brilha continuamente, água do banimento, que protege contra criaturas incorpóreos, mortos-vivos, etc., poção de coragem, que aumenta a eficiência em combate, dentre outros. A alquimia superior permite a criação de fogo de dragão, golens, e outras coisinhas, incluindo os grandes clássicos, como a Pedra Filosofal e o Elixir da Vida.

Sistema monetário, equipamentos e carga

Estes tem sido alguns aspectos que tenho prestado atenção nos sistemas nos últimos anos.

O sistema monetário de Lion & Dragon é baseado em libra, xelim e pêni, mas como descrito no capítulo sobre sistema monetário, as moedas não são algo que a população lide no seu dia a dia. Mesmo os cavaleiros e vassalos recebem alojamento, comida, armas e armaduras em troca de trabalho e lealdade.

A lista de equipamentos é bem diversificada e cobre até mesmo o preço de um castelo, que custa 5.500 libras. Se for construir, o tempo médio é de 1d6+6 anos. Também são apresentados os custos para o pagamento de serviços de mercenários, por exemplo.

O sistema de carga considera que todo personagem consegue carregar consigo 20 itens, modificado pelo bônus/penalidade de Força, e a depender da quantidade de equipamentos, o movimento é reduzido e algumas penalidades podem ser aplicadas a testes de resistência.

Algumas classes, como o Guerreiro e o Clérigo, conseguem usar uma armadura de forma mais eficiente do que outras classes, e dependendo da armadura, são aplicadas penalidades à jogadas baseadas em Destreza e na iniciativa.

O jogo também apresenta regras para armas de fogo, venenos, ervas curativas, e substâncias alquímicas não mágicas, como asbestos e pólvora.

Combate

Uma ponto do combate que me chamou atenção, é sobre os acertos críticos, que acontecem quando o jogador obtêm um 20 natural no dado, e após somados/subtraídos os bônus/penalidades, o valor é igual ou maior do que a CA do alvo.

Nestes casos, é feita uma jogada extra de d20 + Mod. Carisma do Personagem (mais nível se for um guerreiro) e se consulta uma tabela para efeitos adicionais, que incluem, dano extra devido a um corte feio, até morte por decapitação caso o personagem falhe em um teste de resistência.

Itens mágicos

Os itens mágicos estão presentes no jogo, mas eles são discretos, possuem uma história, quantidades limitadas e fornecem pequenos bônus, mas que podem fazer grande diferença em diversas situações.

Os itens também possuem efeitos práticos, não ligados a combate, muito interessantes, como por exemplo, a garra do grifo, que fica preto se toca algo envenenado.

Monstros

O número de criaturas e monstros apresentada no apêndice não é muito grande, mas cobre um número suficiente de possíveis adversários ou aliados que garantirão a diversão do grupo por muito tempo, e que se encaixam bem na proposta medieval autêntica.

O livro é compatível com diversos outros títulos que possuem enormes compêndios de criaturas, que podem ser adaptadas com pouco ou nenhum esforço

Avaliação geral

É indiscutível que o autor se esforça para entregar a experiência medieval autêntica da qual fala no início do livro, ajustando a ambientação às regras para produzir os efeitos desejados.

O sistema de magias é interessante e elegante, removendo aqueles conceitos de poder atrelados aos níveis da magia que os magos e clérigos eram capazes de conjurar.

Os efeitos práticos das habilidades mágicas, na maioria das vezes dissociada das implicações exclusivamente em combate, podem tornar a experiência de jogar Lion & Dragon muito interessantes, contudo, vejo o sistema melhor utilizado em campanhas longas, na qual podemos avaliar melhor todo o seu potencial.

O sistema de evolução por quantidade de aventuras, me pareceu muito interessante. Remove a experiência ganha por ouro, afinal, nobres e cavaleiros não se sentirão compelidos a catar as moedas do bolso de mortos, e não a deixa atrelada a matar monstros, afinal nem sempre o objetivo de uma aventura será matar o dragão (que não são vistos a mais de 200 anos), mas recuperar o seu tesouro ou um único item desse tesouro.

O livro parece entregar o que promete, mas o preço em torno de R$ 40,00 reais na cotação do dólar em 14.10.2019, apenas do PDF, para os padrões brasileiros não é muito interessante, ainda mais quando temos que recorrer a cartão de crédito internacional.

Artigo anterior

Viver pela espada, morrer pela espada?

Próximo artigo

A magia em Mythras

Visualizar Comentários (2)
  1. Salomão Abdalla Filho

    Muito interessante o artigo. Realmente instiga a conhecer o sistema. Chance de ser traduzido?

Deixe uma resposta