(Ou não à morte)
ATENÇÃO! Este é um artigo de opinião e é baseado tão somente na experiência pessoal do autor. Por favor repare que os resultados, benefícios e estratégias sugeridos podem não se aplicar ao contexto de outras mesas de jogo. CONTÉM GATILHOS.
“Os membros da guarda se aproximaram sorrateiramente da caverna. Havia apenas uma sentinela dos orcs ali, lutando contra a preguiça.
Com um sinal de mão do Civilar, a sentinela tombou abatida por uma seta, enquanto os demais soldados, de arma em punho, invadiram o covil e promoveram um verdadeiro massacre entre os orcs.
Nunca mais aquelas criaturas se abateriam sobre o rebanho dos camponeses.”
Foi-se o tempo em que eu olharia para essa narrativa e pensaria nela como uma missão bem sucedida dos personagens. Agora só uma palavra ressoa em minha mente: massacre.
Foi-se o tempo em que me entusiasmavam as descrições gráficas de violência, sobre o olhar atônito do PdN quando ele deslizava para a morte em minha lâmina ou o barulho molhado que cabeças de goblins faziam quando explodidas por um crítico. Pergunto-me: como chegamos a esse ponto?
Foi-se o tempo que eu cultivava traumas em meus jogadores, sendo cruel com seus personagens. Quando eu encarava o rpg como um jogo de narrador x jogador; quando eu atirava sobre o grupo bandos de monstros aleatórios com a desculpa de deixar a partida mais imprevisível; quando eu soltava migalhas e chamava aquilo de tesouro (apenas para ficar ressentido no instante seguinte porque, em sua fome por migalhas, os jogadores avançavam sobre os inimigos vencidos quais abutres vorazes por carniça). Hoje em dia resta-me tão somente a vergonha.
E num mundo que se apoia em operações militares violentas e seus danos colaterais, policiamento abusivo, necropolítica, genocídio sistemático, concentração de riqueza, intolerância religiosa, feminicídio, transfobia, marginalização do Outro, entre outras práticas detestáveis, isso pode significar que se atingiu um ponto de ruptura.
Mas como pode haver ruptura se continuamos cultuando heróis bilionários que espancam os pobres e os mentalmente prejudicados? Se ridicularizamos os idealizados e incorruptíveis como um idiota inverossímil com cueca por cima da calça? Como podemos ser diferentes se seguimos achando o estilo e os poderes do Lado Sombrio da Força mais interessantes? Em que promovemos essa ruptura quando ter espinhos, vestir-se de preto e fazer cara de mal é a fórmula infalível da popularidade? Quando invadir um esconderijo e chacinar os orcs é a solução mais fácil para o problema dos orcs terem invadido nossas casas e chacinado as nossas famílias?
Sim, talvez eu esteja apenas cansado desse nosso mundo de merda, contudo prefiro acreditar em outra perspectiva. É hora de trabalhar para mudar os paradigmas.
A primeira vez que ouvi falar do conceito de hopepunk foi através da Nina Bichara, autora e editora de histórias e jogos de rpg, referindo-se ao espírito do Karyu Densetsu, do qual é co-autora. Ela falava (não com essas palavras) duma lógica inversa aos “pontos de luz” sacramentados na terceira edição do D&D, mas que já eram consagrados em experiências anteriores, como Ravenloft e Midnight. Nestes jogos de d20, a desesperança e a escuridão reinam. Os vilões venceram. O mundo é uma droga e os personagens são os últimos (ou únicos) focos de resistência para alguma improvável mudança.
No Karyu Densetsu, pelo que entendi, o espírito da esperança está vivo e arde como o fogo. E ele é do tamanho de um incêndio, por que o mal até vence às vezes, mas nem sempre! A batalha está aí para ser lutada –e não está perdida a priori.
(Nina, se eu falei besteira, perdoa-me. Amo você!)
Essa é a razão do artigo de hoje: venho propor mudanças. E começarei pela mais dramática delas –proponho o fim do culto à morte.
Vixe! Culto à morte? Creindeuspai! Tá amarrado!
Quer dizer que não vou poder mais matar bichinho? Que aquele meu combo de 7d8 de dano vai se perder? Como que eu vou passar de nível agora se não vou ganhar xp?
O objetivo é esse mesmo, mas você não está preparado para termos essa conversa ainda.
Então vamos de um primeiro passo mais simples. Vamos impedir a morte dos nossos personagens. A partir de agora, eu, o rei, decreto o seguinte: um personagem do jogador não pode morrer durante o jogo, exceto quando for dramaticamente apropriado e devidamente acordado entre os jogadores.
E qual é a graça de jogar um jogo em que não se pode morrer, você pergunta.
A-há! Essa é a chave da questão!
Porém, antes de respondê-la, preciso ressaltar alguns pontos:
- Apesar do tom jocoso, a frase do decreto foi pensada para estar carregada de significados e implicações. Talvez precisemos de uma série de artigos até que esteja compreensível por completo.
- Morrer, no rpg, assim como na vida real, não significa necessariamente perder. Na verdade, em muitos casos (e para muitas crenças) a morte pode ser vista como uma espécie de libertação de uma situação de sofrimento e angústia extremos, embora haja um entendimento de que nunca deveria ser essa uma primeira ou segunda opções, nem ser tomada antes de qualquer debate sereno e ponderado entre as partes envolvidas. Não quero entrar no mérito, nem me sinto apto a debater o tema que se relaciona diretamente com eutanásia, suicídio e até mesmo aborto, porém, no que concerne ao rpg, ver seu personagem morrer devido a um único lance de azar nos dados ou aparição de monstro aleatório em vez de resultado deliberado de escolhas dramáticas é uma libertação. Libertação de uma história ruim como construção colaborativa, visto que ela não leva em conta os anseios dos participantes, deixando tudo a cargo do Deus Dado.
- Se um jogo tem ou não graça é questão bastante discutível, mas partirei do princípio que, nesse caso em particular, tem a ver com o entusiasmo do imprevisível, da tensão da aleatoriedade e do potencial altamente dinâmico do rpg como narrativa conjunta aliada a sistemas de fator-sorte. Perdoe-me por ser direto e seco, mas se a agência da história está totalmente em suas mãos e a experiência resulta em fracasso como diversão, a culpa repousa unicamente nas escolhas feitas –em outras palavras, a culpa é sua. Recomendo jogos com a mecânica resolutiva de Privilégio (como o Blood & Honor, da Red Box) em vez do Sucesso-Fracasso por número-alvo (típicos do d20, GURPS, Storyteller, 3D&T…).
Respondendo agora à pergunta: qual é a graça de jogar um jogo em que não se pode morrer?
Nenhuma, se a morte for considerada uma derrota. Penso que existem coisas muito piores que a morte num jogo, que prendem você a uma experiência miserável, de sofrimento e pessimismo exagerados, sem que se consiga dela libertar-se. Nesta situação, em que os personagens são prisioneiros da crueldade do narrador e a história está a mercê do puro acaso e não do empenho que vocês dedicam a construí-la, então a morte dos personagens é uma libertação. Libertação sua como jogador. Libertação para levantar e ir jogar outra coisa, com outra pessoa.
Sim, existe vida além da morte.
O texto foi originalmente publicado no blog Data Estelar 317.
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Adorei o texto, e fico muito feliz de ser citada.
E já fico aqui enumerando alguns jogos além do KD em que perder uma batalha se esgotando não significa morte, e como isso tira um peso das costas. sem deixar de ser marcante uma derrota.
São muito bons e muito frescos. :3
que outros venham.