(Ou quando a interpretação não concorre ao Oscar)

ATENÇÃO! Este é um artigo de opinião e é baseado tão somente na experiência pessoal do autor. Por favor repare que os resultados, benefícios e estratégias sugeridos podem não se aplicar ao contexto de outras mesas de jogo.

Para escrever esse texto, foi necessário primeiro que eu chegasse ao final de dois processos dolorosos. Um, reconhecer em mim a personificação daquilo que se fala no título; dois, que rpg, como fica claro em seu termo traduzido (jogo de interpretação de papéis), é antes um jogo, coletivo, que envolve pessoas reais, para somente então dizer respeito a fantasias e personificações.

Em essência, e vou dar a você, leitor(a), essa pílula sem água, porque a verdade é mesmo difícil de engolir: ninguém aqui vai ganhar um Oscar e, ao ser um(a) ator(riz) difícil, você fracassa duplamente, como teatro e como jogo.

Em outras palavras, você é somente um(a) mau(á) jogador(a) com uma desculpa cínica.

Ponto.

Agora venha cá. Dê-me um abraço. Desculpe-me pelas palavras duras. Vamos recomeçar e permita-me fazer as coisas direito dessa vez.

Eu nunca fui um bom jogador de rpg, no sentido de participante não-narrador da palavra. Achava-me habilidoso na interpretação dos personagens, mas não porque acreditasse ter algum dom ou facilidade e, sim, porque tive muito mais tempo e chance para treinar com várias personalidades sendo narrador em período integral.

O fato é que os jogos em que eu participava como jogador tinham a incômoda tendência de descambar para o caos generalizado. A história descarrilhava dos trilhos, os personagens se estranhavam com frequência e a aleatoriedade dos dados perdia o significado diante da imprevisibilidade dos atos. Sabe aquela cena do Coringa queimando dinheiro em O Cavaleiro das Trevas? É bem por aí.

O motivo de tanta rebeldia, dizia eu, era que 1) eu estava apenas interpretando o meu personagem até as últimas consequências, 2) um rpg era um jogo de contar histórias e não de vivenciar roteiros já escritos. Repare, querido(a) leitor(a), como isso está ligado de forma inextricável às duas conclusões do parágrafo inicial. Perceba como é apenas uma desculpa para dizer que eu não me importava com a experiência dos outros jogadores e que queria uma versão se-não-minha-de-ninguém-mais da história.

Um mau jogador sem qualquer chance de Oscar.

Em minha arrogância e egoísmo, demoraria a perceber como os jogos fluíam e as campanhas duravam sem mim. Talvez como forma de negar o próprio fracasso, afastei-me dos jogos como jogador, parei mesmo, sob justificativa de não estar mais encontrando o que buscava num rpg.

O que eu estava buscando? Nem sei, mas as outras pessoas tiveram a sagacidade de não perguntar e evitar, assim, o retorno daquele sujeito difícil para a mesa. Foi melhor desse jeito, pois me deu o tempo, distanciamento e perspectiva para a reflexão vindoura.

Não que tenha sido fácil, é claro.

Obrigado. Eu estava mesmo precisando desse outro abraço. Sei que não deveria ser tão duro comigo mesmo, é apenas um jogo e aquelas pessoas são minhas amigas. Vamos tentar de novo.

O que me levou a escrever esse artigo foi uma cena tarantinesca que ocorreu num recente jogo de Starfinder e uma tirinha com a qual me deparei no dia seguinte.

A cena tarantinesca, também chamada de mexican standoff, é aquela na qual se chegou a uma situação de impasse dramático, em que não existe vitória porque qualquer movimento resultará na derrota da pessoa. No caso do Starfinder, foi literalmente o grupo de personagens dos jogadores, todos com 1 PV e sem nenhum PE ou PD, com pistolas miradas nas cabeças uns dos outros.

Calma que piora (é Tarantino, lembra?): a aventura em si já havia terminado. O grupo se arrastara pela masmorra, vencera o desafio e pegara o artefato. Tudo que tinha de fazer era caminhar calmamente para fora da ruína, subir na sua nave e rolariam os créditos.

Então o que aconteceu? Alguém teve a ideia de interpretar. Ocorreu-lhe naquele momento, e somente naquele momento, de levar em conta algo que sequer existiu, mas que por extrapolação non sequitur ele tomou como verdade para seu personagem. E apontou uma arma para outro. Que apontou de volta e ficou sob a mira de um terceiro. O quarto, veja só, tinha duas armas… mas aí você já entendeu.

O resultado? Um personagem morreu, embora fosse do narrador. E ele (o personagem) era de fato o mais inocente dessa confusão toda, o conhecido NB (Neutro e Besta). Naquele instante de tensão e silêncio, ele foi o primeiro a puxar o gatilho e errar o tiro, recebendo todos os demais.

Passado o horror, a catarse. E com a catarse, os ânimos se acalmam. Seguem para a nave. Sobem os créditos. Acaba o jogo.

Pergunto como aquilo aconteceu e desta vez estou do outro lado do diálogo: “estava apenas interpretando o meu personagem”.

Foi meu momento de Iluminação. Pude enxergar com uma clareza cristalina o meu eu do passado, arrogante e egoísta, que sacrificava a experiência dos outros por sua teatralidade fajuta, e o meu eu de agora, capaz de sacrificar um personagem inocente de tantos que tenho como narrador pelo bem da história, para que não se perca o único que os jogadores têm graças a um acesso súbito de caos.

E não, eu não esqueci da tirinha. ; )

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Escrito por Melgalian
Melgalian vem e vai na obscuridade da internet como um fenômeno astronômico raro que ninguém (nem mesmo cientistas) presencia. Joga rpg desde que se entende por gente, mas não sabe em absoluto o que fazer com isso. Talvez você esperasse encontrar algo de relevante sobre o autor nessas linhas e nós pedimos desculpas desde já pelo inconveniente.