Saudações, jovens e veteranos aventureiros.

Após um recesso involuntário como mestre/narrador/anfitrião/juiz/etc./etc., eis que retorno ao ofício do lançamento de dados e criação coletiva de histórias (não necessariamente nessa ordem). Esse retorno implica, necessariamente, em inspiração para escrever sobre o hobbie, principalmente para aqueles jogadores novatos, que ainda estão sentados à soleira de suas tocas, aguardando a chegada de um mago intrometido que os levará para viverem grandes aventuras.

Nas próximas linhas, vou fazer um relato sobre a minha experiência com um grupo de jogadores novatos, nas duas primeiras sessões de uma mini-campanha de BRP (mais informações aqui). Mas se você não joga e nem pretende jogar BRP, eu o desafio a continuar a leitura, afinal, a experiência que compartilho abaixo vale para qualquer RPG.

Era uma vez…

Em algum momento de 2016, um amigo e professor do Instituto Federal do Amapá, me procurou, dizendo que alguns de seus alunos viram uns desenhos estranhos no computador dele e perguntaram se ele jogava RPG (o de mesa, com dados e livros). Ele disse que não, mas que conhecia alguém que jogava e acabou me apresentando aos jovens aventureiros, que estavam ávidos por encontrar um mestre para jogar com eles.

Quando os conheci, infelizmente, muito de meu tempo estava ocupado com funções burocráticas, mas prometi que assim que tivesse um tempinho, montaria um projeto na Instituição para jogar RPG e que pudesse envolver, por exemplo a produção de material para RPG e a partir das sessões jogadas…

O tempo passou, o ano letivo de 2017 chegou e junto com o ano novo, veio a vontade de colocar o projeto para frente. Foi quando retomei o contato com o grupo de jogadores…

Uma conversa regada a leite morno…

A conversa com os jovens aventureiros foi rápida. Expliquei-lhes que queria fazer um projeto, não somente para jogar RPG, mas que também iria requerer a produção de material (contos, RPGs solo, folhetos, etc.), qualquer coisa que eu pudesse usar para agregar outros professores e tornar o projeto lúdico-acadêmico.

Toparam!

Agora eu ia começar a brincadeira. Marquei o primeiro encontro, a SESSÃO ZERO.

A SESSÃO ZERO

Eu gosto da sessão zero. Acho ela importante, fundamental até, principalmente se você, como eu, tem a pretensão de narrar uma campanha e não teve nenhuma experiência anterior com os jogadores.

É na sessão zero que você vai olhar nos olhos de cada um e buscar extrair o máximo de informações possíveis sobre eles. Essas informações ajudarão o narrador a definir com mais clareza o que cada jogador quer, o que esperam da experiência de jogo.

Use e abuse dessa ferramenta para que você tenha tempo para preparar a primeira sessão — não se preocupe com uma preparação detalhada, mas concentre-se no que os jogadores querem.

O Raphael Lima, no artigo A Aventura vai começar, falou sobre a sessão zero aplicada na criação de personagens do sistema FAE. Neste artigo vou ser um pouco mais genético genérico e apresentar aqueles pontos que considero fundamentais.

1. O contrato social

Acho que alguém já ouviu falar em contrato social. Se não ouviu, bem, ele determina o que pode e o que não pode durante as sessões. Quase sempre ninguém fala dele; suas regras são implícitas, mas algumas vezes, e principalmente para jogadores novatos, é bom deixar as regrinhas bem claras, para que a diversão não seja prejudicada e nem tenham más impressões as pessoas que passem e vejam o jogo, principalmente se ele for em local público.

Estabeleci as seguintes regras básicas para o contrato social:

  • Não falar palavras de baixo calão: as sessões vão acontecer dentro de uma instituição de ensino, em uma sala de aula ou na biblioteca e palavras de baixo calão definitivamente não combinam com esse tipo de ambiente.
  • Não gritar: pelos mesmos motivos listados acima. Empolgar-se em determinadas cenas é normal, mas elevar o volume poderia causar até uma expulsão do ambiente e isso soaria muito mal para a prática do RPG na instituição.
  • Nenhum ato de discriminação será tolerado: promover qualquer ato discriminatório entre os jogadores, por questões raciais, de gênero, orientação sexual, política, etc., está fora de questão. Somos seres civilizados e não preconceituosos.
  • Teus rendimentos escolares serão acompanhados: não há nada que eu tema mais do que prejudicar o rendimento acadêmico (eu temo outras coisas também, claro…) dos jogadores, em função de jogo. Os rendimentos acadêmicos de todos serão monitorados e ao menor sinal de redução no rendimento, o jogador será desligado da mesa. Isso aqui é um caso específico. Se você joga na sua casa ou em outro espaço e não é pai ou professor, não levará isso em conta…. nunca.
  • Dado que cair no chão é re-rolado na mesa: se ao jogar um dado, ele cair no chão, ele deverá ser re-rolado na mesa. Nenhum resultado que sair da mesa será considerado.

Existem muitas outras cláusulas do contrato social que podem ser levadas em consideração, como por exemplo, o que acontecerá com o personagem de um jogador que faltar a uma sessão? A cada sessão um dos jogadores paga o lanche? É permitido a um jogador fumante, fumar na mesa durante o jogo? É permitido fazer metagame? O que os jogadores falarem será sempre como se o personagem estivesse falando? Serão permitidas piadas duranta a sessão, mesmo quando não tiverem nada a ver com a história?

O contrato social é um norteador das boas relações em uma mesa. Pense nele com carinho e torne-o explícito se sentir necessidade.

2. Escolhendo o cenário e o sistema de regras

Esta etapa é mais comum quando o grupo tem vários sistemas de RPG a disposição ou um RPG universal, como é o caso do BRP (não disponível em português), Cypher System (sistema do Numenera e disponível em português), GURPS (alguns exemplares ainda vendidos nas lojas especializadas ou as melhores livrarias), Savage Worlds ou FAE/FATE (estes últimos disponíveis em português) e colocam todos eles à mesa para teste.

Aproveite este momento para conhecer um pouco mais os jogadores, e direcione os esforços no sentido de ficar bem claro as preferências e experiências prévias dos jogadores. Faça perguntas como: Vocês gostam de ler? Que tipos de livros costumam ler? Quais os seus livros prediletos? Que tipos de jogos costumam jogar (vídeo game, tabuleiro, RPGs)? Já jogaram RPG? Como eram os personagens? Que elementos gostariam de ver em uma aventura?

No meu caso, como o sistema já estava definido, deixei que os jogadores fizessem uma tempestade cerebral para determinar o cenário/ambientação, baseando-se nas experiências anteriores deles. Ao final de dez minutos e uma votação apertada, foi escolhido uma ambientação moderna com toques de terror e então determinei que a aventura se passaria em Macapá, o que facilitaria uma maior imersão dos jogadores.

3. Criação dos Personagens

Determinados os aspectos sobre ambientação e estando claro qual o sistema de regras que utilizaríamos, passamos para a criação dos personagens e antes que eles optassem por um método de construção dos personagens, pedi que eles me dissessem quem seriam seus personagens — que desenvolvessem um conceito inicial para eles.

Ter uma ideia do que quer ser, mesmo que seja difícil.

[blogoma_blockquote]Em alguns RPGs, o desenvolvimento do conceito é normalmente feito depois da determinação das características/atributos. Particularmente gosto de fazer antes, pois com o conceito definido, alguns valores de características baixas, podem se tornar pontos fracos que precisam ser explorados e podem render bons momentos no jogo.[/blogoma_blockquote]

Cada RPG fornece uma ou mais formas de criar os personagens, normalmente através de rolagens de dados (cuja soma fornece os valores dos atributos) ou através de distribuição por pontos. O segundo método é melhor empregado quando você quer ter mais controle sobre a criação do personagem e evitar que valores muito baixos sejam obtidos.

[blogoma_blockquote]As campanhas organizadas de D&D utilizam sempre um sistema de distribuição por pontos para que seja garantido o equilíbrio entre os personagens e que qualquer um possa jogar com seu personagem em qualquer mesa em qualquer lugar do mundo que participe dessas campanhas organizadas.[/blogoma_blockquote]

No caso do BRP, essas duas opções estão disponíveis. Expliquei aos jogadores e deixei que eles escolhessem. Para minha surpresa, escolheram a jogada de dados, o que me fez acreditar que eles pensavam que teriam sorte nos lançamentos…

Criar os personagens é mais do que atribuir números a características

É altamente recomendado que a criação dos personagens seja feita em conjunto, principalmente para que os jogadores imaginem como seus personagens poderão interagir. Dependendo do jogo e da sua proposta, os personagens podem nunca se conhecer, mas normalmente, a maior parte dos jogos segue a premissa; não separe o grupo.

Eu também recomendo criar os personagens de forma coletiva, cada um opinando sobre possíveis habilidades dos outros, pois isso reforça a responsabilidade de cada jogador por todos os personagens, além de reforçar o trabalho coletivo e espírito de equipe.

4. Os vínculos entre os personagens

Os personagens podem não se conhecer. Podem não ter vínculos diretos, mas há sempre uma forma de ligá-los e este é um exercício que utilizei e que foi muito divertido. Disponibilizei um quadro branco e um pincel vermelho (era só o que eu tinha disponível) e deixei que os jogadores se divertissem buscando elementos que ligassem um personagem a outro.

Qualquer coisa serve para ligar os personagens.

Contrato social discutido, cenário/ambientação e sistema de regras definidos, fichas prontas e vínculos estabelecidos, pedi que os jogadores fizessem uma análise da sessão zero, que me ajudariam a melhorar outras sessões zero futuras.

[blogoma_blockquote]O idioma não ajudou muito. Como somente você (o mestre) sabe inglês, fica mais difícil para entendermos todas as possibilidades na criação do personagem.[/blogoma_blockquote]

A barreira linguística ainda é um problema sério. Muitos bons RPGs ainda não ganharam suas versões em português e se você pretende narrar algo que não está em nosso idioma materno, esteja preparado para explicar tudo e tirar todas as dúvidas dos jogadores durante a criação dos personagens. Paciência e boa vontade são essenciais.

[blogoma_blockquote]A criação da ficha demorou muito.[/blogoma_blockquote]

Novamente uma situação apontada como reflexo da barreira linguística. Tendo que explicar o que fazia cada coisinha na ficha, acabamos demorando para fechar todas as fichas.

As opiniões me incentivaram a criar uma ficha-resumo para a criação dos próximos personagens em português. A ideia é produzir um material com as descrições básicas e essenciais em nosso idioma, para auxiliar os jogadores a construírem os personagens mais rapidamente.

[blogoma_blockquote]A Sessão ZERO é extremamente importante quando você vai começar uma nova campanha ou rolar algumas poucas aventuras interligadas. É nela que você terá a oportunidade de apresentar o contrato social, deixar que o grupo defina o cenário/ambientação e criar os personagens em conjunto e de forma colaborativa, deixando claro as expectativas que cada um tem e que experiências eles desejam.[/blogoma_blockquote]

No próximo artigo vou falar um pouco sobre a Sessão UM que tive com este grupo, algumas técnicas que utilizei para deixar todos os jogadores envolvidos e apresentar as opiniões deles sobre a primeira sessão.

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Escrito por Franciolli Araújo
Esposo de Paula, pai de Pedro e Nathanael. Professor e pesquisador na área de mineração. Um sujeito indeterminado que gosta de contar histórias e escrever sobre elas e acredita que o RPG é o hobbie perfeito, embora existam controvérsias.