Isso já aconteceu em uma mesa minha, curiosamente com a minha esposa.
– Ok, eu sou uma changeling, então vou dar a volta pela árvore, mudar minha aparência para um homem e voltar para falar com ele.
– Você faz isso, mas a habilidade não muda suas roupas. Agora você está na frente do NPC com aparência de homem mas com roupas femininas meio rasgadas por causa do seu aumento de tamanho.
– Ah, merda. Esqueci que não mudava as roupas.
E aí virou piada e o grupo todo deu risada. Eu era o mestre, e acredito que a maior parte da povo do RPG tradicional também mestre dessa forma: um juíz imparcial, narrador do que acontece no mundo ficcional. O problema de não ter conferido as regras era do jogador, não meu.
Se esta situação acontecesse comigo hoje, seria bem diferente:
– Ok, sou uma changeling, então vou dar a volta pela árvore, mudar minha aparência para a de um homem e voltar para falar com ele.
– Tudo bem, mas isso não vai mudar suas roupas, talvez não seja tão efetivo assim. Quer mesmo fazer?
– Ah não, tinha esquecido disso. Ferrou…
– O que você quer fazer afinal?
– Queria tentar pegar informação dele através de outro ponto de vista.
– Você poderia pegar “emprestado” roupas de alguém, poderia virar uma outra mulher mesmo.
– Mas eu não tenho outra muda de roupa comigo. Espera, e se eu só tirar a armadura e botar um chapéu?
– Aí seria um teste de Disfarce, relativamente fácil, para ele não achar estranho.
– Pode ser! Vou fazer isso!
O que mudou nisso? O papel do mestre agora é de um facilitador, não de juíz imparcial. Ele não tem a noção de que os jogadores querem “estragar o jogo”. Pelo contrário, os NPCs e o cenário só estão lá para servir a diversão dos jogadores. Dessa forma, ele irá facilitar essa interação da melhor maneira possível: chamando atenção para falhas óbvias nos planos, interpretação errada de regras, dizendo a dificuldade e possíveis consequências em caso de falha. Basicamente, dando informações o suficiente para que a interação dos jogadores com a ficção seja significativa e interessante. Como sempre, o Apocalypse World é bem categórico nesse aspecto:
Seja sempre escrupuloso, até mesmo generoso, com a verdade. Os jogadores dependem de você para lhes dar informações reais que eles podem realmente usar, sobre os arredores dos personagens, o que está acontecendo, quando e onde. A mesma coisa com as regras do jogo: jogue com integridade e de mão aberta. Os jogadores tem direito aos benefícios completos de seus movimentos, de suas jogadas, dos pontos fortes e recursos de seus personagens. Não os engane, não saia pela tangente, não faça pegadinhas.
Se você está jogando o jogo como adversário dos jogadores, suas responsabilidades de tomada de decisões e seu domínio sobre as regras constituem um conflito de interesses. Jogue o jogo com os jogadores, não contra eles.
Isso não significa revelar todos os segredos imediatamente, de jeito nenhum. Um pouco de mistério é fundamental para deixar as coisas interessantes. Mas don’t play gotcha, como disse o Baker. O jogo fica muito melhor dessa forma.
O Burning Wheel tem suas regras para favorecer este estilo de jogo, tornando obrigatório que o jogador descreva não apenas o que ele está fazendo (a tarefa), mas o que ele quer atingir com isso (sua intenção). O mestre então julga a dificuldade e as consequências e apresenta para os jogadores antes do teste. É uma prática que tento utilizar em qualquer RPG que jogo atualmente.
A mesma coisa vale para os jogadores. Sempre que você for se divertir jogando RPG, pense se você queria mesmo jogar este jogo com estas pessoas. Se a resposta não for um “sim, é claro!”, talvez seja melhor você se retirar da mesa para não atrapalhar a diversão dos outros. Um dos melhores conselhos que já vi foi que você deve tentar fazer os outros jogadores (e o GM!) parecerem incríveis.
A grande verdade é que não existem advogados de regras. O que existe são pessoas que não confiam em seus amigos e companheiros de jogo, que tentam forçar uma situação vantajosa por considerar a “integridade física” do seu personagem mais importante do que o bem estar social do grupo. Não é uma questão de entendimento das regras, e sim um comportamento social nocivo.
Por fim, vale a pena reproduzir o Manifesto da Diversão Agora no RPG.
1. Nem todo mundo gosta das mesmas coisas.
2. Jogue com pessoas que você gosta.
3. Jogue com regras que você gosta.
4. Todos são jogadores.
5. Conversar é bom.
6. Confiança, não medo ou poder.
7. É um jogo, não um casamento.
8. Coisas divertidas a cada 10 minutos.
9. Conserte os problemas, não tolere-os.
Vamos nos divertir, jogando com boa intenção.
O Guia do Mestre de Dragon Age RPG (um livro excelente) fala disso, ele chama de “conflito de pressupostos”. Do mesmo jeito que o personagem não esquece de vestir as calças de manhã, não faz muito sentido ele esquecer coisas que todos sabemos que ele lembraria. O jogo sugere que você haja, como DM, igual à segunda situação, avisando ao jogador de algo que o personagem dele poderia pensar/lembrar. Ou então poderia ser assim: “bem, você vira homem, encontra uma capa num varal e a usa para disfarçar que está de vestido”. Outro exemplo: eu costumo fazer também é perguntar ao jogador se ele esqueceu ou o se personagem está mentindo quando ele dá uma informação errada a alguém.
excelente texto! exemplifica exatamente meu estilo de mestrar já há alguns anos!!! eu acho mesmo que o papel do Narrador é de completar a cena e não antagonizar os jogadores!
“7. É um jogo, não um casamento.”Convido você a discorrer sobre isso. :Dhahaha.
Que fique claro que se você acha que casamento não é divertido, eu vou encarar isso como um desafio, e fotos do Nicolas Cage no banheiro terão sido só o começo de uma vida CHEIA DE DIVERSÃO E AVENTURAS.
Algumas pessoas encaram “vamos jogar RPG!” como um compromisso de anos, que se deve ter fidelidade, que não mudam os integrantes. Não é raro ver gente dizendo que jogo só fica legal depois de 6 meses de campanha.Jogo não é casamento: não é por que não foi divertido que precisa acabar amizade (como já vi acontecer, no caso do Heitor). Não é um divórcio, é um jogo, só isso!Sacou? 😀
Hahaha. Não. :D.Fale a verdade, você está me desafiando para deixar sua vida mais divertida! FALE!Prepare-se para achar fotos do Nicolas Cage até dentro do arroz.
Hehehehe minha patroa também convida!
Pedro Leone, para de postar naquele blog. Suas ideias precisam ser compartilhadas, são dicas, lembretes e relembretes que suscitam boas discussões e trocas de experiências.
Um texto excelente, como as expectativas que já tenho sobre os autores da Forja.E me parece que a tendência dos jogos agora é direcionar a função Narrador para este aspecto, mais arbitrário e livre. Algo que, com certeza, exerce maior diversão a todos os envolvidos.E sim, eu levei um bocado de tempo com essas regras – que hoje fazem parte do meu exercício como RPGista (só espero que a “regra número 7” não seja lida por minha esposa… :D)
Muito bom o texto, é uma grande verdade que quando narrador e jogadores encaram o jogo como uma competição tudo vai por água abaixo, a diversão se perde e da lugar ao conflito. Já passei por situações bem desagradáveis com jogadores que só pensavam em dificultar a vida do narrador e narradores que se divertiam sozinhos eliminando os personagens dos jogadores com toques de crueldade. Particularmente, como narrador, não fico feliz quando os jogadores insistem em invalidar todo o meu esforço na preparação da aventura ou campanha e como jogador não gosto quando tenho que montar 5 fichas de personagem por sessão de jogo.Quando estou mestrando, a diversão é prioridade, já cheguei a dizer que um NPC errou um golpe quando na verdade o resultado do teste era um acerto crítico, só para dar mais uma chance ao grupo.
Esse post foi massa, mas nada melhor que a resposta da Mari. Eu ri. Muito.
Hahaha, obrigada :D. Conviver comigo é um inferno, você nunca sabe onde vai achar uma piadinha na casa.
[…] do meu último post Jogando com Boa Intenção, o qual eu ampliei e postei no ForjaRPG, tive uma conversa bem interessante com a criatura-troll Ooze. Depois de matutar bastante, resolvi […]
Eu não sei. Eu não acho que você não avisar das burradas seja que você está jogando contra. Você está sendo imparcial, justo. Acho até valido avisar sobre certas coisas para um iniciante, algumas vezes, mas depois, deixar ele tomar suas próprias decisões. Se você fizer isso sempre, é bem capaz dos jogadores acharem que podem depender disso e não precisam se preocupar, porque o mestre vai avisar se eles estiverem fazendo algo errado. RPG, para mim, é um jogo de fazer escolhas, e para elas serem reais, deve haver consequências, seja para o bem, seja para o mal.Sei lá, as vezes eu vejo que os jogadores hoje em dia parecem que estão sendo muito mimados, tudo na mão, criados com ovomaltine.
Mas ser imparcial, ou seja, fazer com que as escolhas dos jogadores tragam consequências, tanto ruins, como boas, é antagonizar os jogadores? Eles tem que sempre vencer e se dar bem? Se sim, onde está a aventura e o desafio?
Diogo, a questão se resume a fazer escolhas com todas as variáves à vista. É de dar informações verdadeiras e relevantes para que os jogadores tomem as decisões que eles quiserem.Isso não significa que não existe surpresa, nem mistério. Nem que não existam consequências ruins. Pelo contrário! Eles irão sofrer para conseguir o que querem, irão passar por provações horríveis, irão sofrer, se arrepender, verão tudo que eles gostam passar por um fio da destruição completa, irão questionar seus próprios julgamentos e pensar se não estão lado errado. Os NPCs irão lugar com todas as forças, jogando sujo e sem piedade. As regras serão obedecidas sem procurar loopholes para proteger personagens.A única diferença é que isso não vai acontecer pois eles falaram que iam para direita quando se tivessem prestando atenção no jogo saberiam que o caminho correto é para a esquerda. Nem por terem tomado uma decisão sem estar entendendo o que está acontecendo a volta, ou pelo GM ter dado informações imprecisas para enganá-los. Não, vai estar tudo a mostra, tudo às claras, jogo limpo. Mas ainda assim um jogo, dramático e imprevisível.