Esta é uma adaptação, do texto “Live by the sword, die by the sword?” escrito por Pete Nash e publicado na revista The Fenix Paper. Mythras é um sistema conhecido por abraçar a letalidade real de um combate, quebrando alguns paradigmas. O ponto chave do artigo é: a violência é a principal forma de resolver alguns tipos de conflitos? E mesmo o combate, precisa ser letal? Que elementos o sistema me entrega para tornar a minha experiência com o jogo diferenciada?

VIVER PELA ESPADA, MORRER PELA ESPADA?

VITÓRIA OU MORTE

“Hoje é um bom dia para morrer!”

Cavalo Louco, Batalha de Little Bighorn

Diferente de muitos outros jogos, Mythras deixa claro que o realismo faz parte de sua proposta, fugindo do paradigma repetitivo do chutar a porta, matar o monstro e pilhar os tesouros da sala. Tanto na vida real quanto no jogo, um ferimento provocado por uma espada longa pode ser fatal, amputando uma perna ou mesmo decapitando um adversário.

Embora Mythras possua vários aspectos que reduzem as chances de morrer em combate, o sistema em si encoraja os jogadores a pensar em soluções alternativas para os problemas que confrontam, ao invés de abrir caminho matando todos os inimigos que apareçam. O sistema abraça o realismo para enfatizar os perigos do combate, e sendo assim, ampliam a experiência de jogo.

Isso pode até parecer contraditório quando se fala em RPG, especialmente para aqueles jogos com sistemas de combate projetados para glorificar heróis empunhando espadas… mas ponderar sobre os riscos de desembainhar uma arma, também pode ser divertido para um personagem confrontado com decisões difíceis.

Quando olhamos para as origens da literatura de Fantasia Histórica ou Espada & Feitiçaria, percebemos que mesmo os mais fortes protagonistas pensavam duas vezes sobre a violência desnecessária; usando sacadas engenhosas para aliviar uma situação tensa, furtividade e astúcia para contorná-la, ou simplesmente fugindo de um combate quando as coisas ficam realmente feias. Na verdade, é muito raro que os destemidos heróis da ficção abram caminho batalha após batalha, embora esta seja a forma que os jogadores façam habitualmente.

Mas por que isso? Parte disso se deve ao fato dos RPGs terem evoluído dos Jogos de Guerra (War Games), baseado em regras voltadas para encontros campais. Mythras foi um dos primeiros jogos a abraçar o conceito de elementos que não exclusivamente a violência, adicionando uma gama diversa de habilidades e magias que contemplam os aspectos sócio-religiosos de uma cultura.

O jogo, no entanto, ainda contava muito com o combate para resolver situações – portanto, não surpreende que os Mestres tenham permitido que seus personagens se revoltassem em suas campanhas sem que o próprio mundo reagisse a essas ações.

USO CRITERIOSO DO COMBATE

“Força não tem lugar, onde se precisa de talentos.”

Heródoto

Uma vez que o combate é tão central no tema de aventura e fantasia, como Mythras retrata conflitos violentos sem terminar em sucessivos banhos de sangue? Afinal, a excitação de um bom combate é parte fundamental de muitos jogos de RPG.

Bem, o método mais óbvio seria usar Briga ao invés de sacar uma arma, quando uma pequena luta for necessária, como para dominar um guarda ou retribuir um insulto, por exemplo. O uso dos punhos sugere que o combate não será até a morte, enquanto a utilização de uma faca ou espada sugere o contrário. As brigas são o método mais comum de resolver diferenças na cultura humana, então abrace-as!

Além disso, Mythras possui várias técnicas não letais que podem terminar uma luta sem derramamento de sangue e sem penalidades inerentes. Cegar Oponente, Forçar Rendição, Desarmar Oponente, Atordoar parte do corpo, Derrubar Inimigo e Desengajar são exemplos de efeitos que podem ser usados em um adversário, durante uma situação difícil, ou que dê ao personagem uma chance de fugir. Em muitos casos, esses efeitos podem até ganhar um combate mais rápido do que se o personagem estivesse ativamente tentando matar seu oponente.

As armaduras funcionam reduzindo o dano; isso é inestimável para aqueles que esperam combates violentos, razão pela qual guerreiros históricos, ao longo das eras, as usaram. Acumular Pontos de Sorte para forçar o Mestre a refazer uma jogada ou reduzir os efeitos de um Ferimento Grave, é outra forma de salvar vidas – especialmente se a matança de adversários caídos e indefesos não é bem vista no cenário.

Então, embora mecanicamente seja possível conduzir um jogo com baixa letalidade, as opções não letais disponíveis, devem ser abraçadas pelos jogadores… isso, na realidade, é um grande problema.

CONSEQÜÊNCIAS DA VIOLÊNCIA

“Viram? A violência é inerente ao sistema! Socorro, estão me reprimindo!”

Monty Python e o Cálice Sagrado

Como os jogos de RPG evoluíram para interação social, a utilização de níveis desnecessários de violência se tornou difícil de lidar, criando uma dicotomia entre o estilo tradicional de pilhagem e uma ambientação crível. Uma coisa que evoluiu com a maturidade do hobbie.

O ponto central da questão é que na vida real, muitas pessoas se sentem desconfortáveis com o assassinato, temendo aqueles que podem matar impunemente, ou aqueles que tem muito sangue em suas mãos. Ao invés de tratar essas pessoas como ídolos a serem reverenciadas, a sociedade irá gradualmente afastá-los, mesmo que eles sejam heróis que mereçam agradecimentos. Isso pode ser visto em filmes como O Cavaleiro Solitário (1985), contos como A Saga de Njál, ou mesmo o tratamento dispensado a veteranos de guerra; ainda que nada disso seja representado em um cenário de campanha.

É claro que as circunstâncias dessa violência possui um fator de minimizador. Matar feras selvagens e monstros predadores, não acarreta nenhum estigma. Lutar em uma batalha para defender uma família, tribo ou nação é louvável. No entanto, atacar e talvez matar um homem por mentir, roubar, ou simplesmente porque o grupo estava entediado, raramente é justificável.

Algumas sociedades possuem rituais ou tradições que permitem combates em situações particulares, como defender a honra de alguém lutando em um duelo, ou defender-se de uma acusação em um julgamento por combate. Mesmo nesses lugares, duelos ou julgamentos por combate constantes fará do seu personagem alguém a ser evitado; no mínimo, você atrairá os seus associados para um ciclo de vinganças.

OS BENEFÍCIOS DA MISERICÓRDIA

“Você deve se fazer uma pergunta: “Eu me sinto sortudo?” E aí, você se sente, punk?”

Perseguição Implacável (1971)

Poucos mestres desejam perseguir deliberadamente seus jogadores por agirem em legítima defesa ou por salvarem outros, especialmente se eles não estiverem desrespeitando deliberadamente as leis ou autoridades locais. Então, é responsabilidade do Mestre dar aos personagens dos jogadores a chance de resolver problemas e corrigir injustiças sem precisar recorrer à matança.

No entanto, existe uma circunstância que algumas vezes é difícil de lidar, aquela nas quais os jogadores se vêem diante de uma derrota iminente. Não é incomum que os personagens se tornem ainda mais obstinados e se recusem a fugir ou se renderem, mesmo quando enfrentando a morte certa. Embora isso possa levar a uma última resistência épica, essa situação pode se tornar amarga, caso os personagens morram, embora tenha sido a própria teimosia dos jogadores que tenha matado seus personagens.

A negativa em admitir a derrota pode ser em parte devido à crença dos jogadores que seu Mestre poderá matá-los quando estiverem desarmados e indefesos. Então, é necessário que haja confiança entre os jogadores e o Mestre, de que seus personagens serão tratados com justiça, dentro dos padrões do cenário que eles estão jogando.

Estes reveses devem ser vistos apenas como um outro passo dentro da narrativa, uma oportunidade a ser explorada, ao invés de uma desculpa para matar um grupo de personagens indefesos. Este, afinal, é o básico da literatura ou filmes de aventura – heróis derrotados escapando repetidamente, soltos por um sequestrador honrado, ou abrindo caminho para a liberdade pelos seus próprios meios.

Da mesma forma, demonstrações de misericórdia não devem ser abusadas pelo Mestre, de forma que um antagonista que tenha sido poupado, não pegue uma arma escondida e ataque os personagens de forma descontrolada; ao invés disso, eles devem agir como alguém que teve uma segunda chance; deixar a sua profissão nefasta, pensar em um novo plano diabólico, ou sentir a necessidade de reequilibrar a balança da honra, antes de continuar com a sua disputa.

Aqui a motivação é importante, ladrões, valentões, amantes rejeitados, mesmo aqueles que procuram por justiça, provavelmente não desejam simplesmente tirar a vida dos personagens jogadores, mesmo quando o confronto seja violento. Quando as coisas vão mal, a maioria busca uma rota de fuga e provavelmente nunca mais incomodarão os personagens.

NÃO TEMA A ARMA, MAS A MÃO QUE A SEGURA

Violência é minha última opção.

Chuck Norris

Na realidade, poucas pessoas lutam até a morte. De fato, as mortes em combate são mais freqüentemente um efeito colateral indesejado de lutar com armas, do que um ato deliberado. Por outro lado, aventuras do tipo pilhar e destruir são muito divertidas, desde que se aceite a morte ocasional dos personagens como uma consequência.

Uma vez que o combate em Mythras pode lidar com ambos os estilos de jogo com desenvoltura, a questão do quão perigoso é o sistema, está mais relacionada a interpretação do que de mecânica. O jogo é tão letal quanto você e seus jogadores desejem que seja.

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Escrito por Franciolli Araújo
Esposo de Paula, pai de Pedro e Nathanael. Professor e pesquisador na área de mineração. Um sujeito indeterminado que gosta de contar histórias e escrever sobre elas e acredita que o RPG é o hobbie perfeito, embora existam controvérsias.