Nos últimos dias iniciei o meu caminho de volta às comunidades de RPG e tenho observado algumas postagens interessantes, algumas com temas recorrentes, como casos de sexismo e misoginia.

Uma das postagens era uma chamada para o artigo Correndo como lobas, do blog Matilha da Garoa, que fala sobre o preconceito que as mulheres sofrem nas mesas de jogos.

Não falar sobre o problema é ignorá-lo e falar sobre, não tem nada a ver com o politicamente correto, faz parte do contrato social, que fazendo coro com a autora do artigo já mencionado, precisa sim ser discutido.

Meus primeiros grupos

Quando comecei a jogar RPG, o nosso grupo de nerds e pseudo-nerds era formado exclusivamente por homens. Mulheres não participavam. Não entravam, não por opção nossa, elas simplesmente não pareciam interessadas em se reunir a um bando de adolescentes estranhos em um final de semana… Essa era a impressão que eu tinha. Eu poderia ser simplesmente pelo fato de não termos amigas… Bem. Acho que isso não vem ao caso.

No início dos anos 2000, fui convidado por um amigo a jogar na “casa mal assombrada”. A idéia era montar um clube e os jogos aconteceriam em uma casa de propriedade da mãe desse amigo e que estava fechada. Enquanto não fosse alugada, serviria à causa rpgística. Eram dois quartos, uma sala e uma cozinha que aos finais de semana abrigava uma pequena horda de amigos que se reuniam e entregavam-se a criação de histórias fantásticas por horas a fio.

A “casa mal assombrada” atraía um público que chegava a vinte jogadores nos finais de semana, algumas jogadoras, inclusive. E foi justamente em uma sessão de Vampiro a Máscara, que eu estava como jogador, que presenciei uma cena que não sai da minha cabeça até hoje, mais de quinze anos, direto do túnel do tempo.

Naquele dia em especial, apareceram duas meninas na faixa dos 16 anos, convidadas por um dos jogadores da mesa. Aquele seria o primeiro contato delas com o RPG. Elas estavam empolgadas para conhecer o jogo e estavam visivelmente apreensivas, afinal, todos ali pareciam conhecer bem o jogo e em sua maioria eram completos estranhos.

O mestre estava conduzindo a história direitinho, deixando-as a vontade, mas em um dado momento, as vampiras que elas interpretavam ficaram cara a cara com o vampiro interpretado por um dos jogadores, que não lembro a razão quis intimidar as personagens. O jogador então, dirigindo-se às jogadores, fala-lhes rispidamente e desfere um soco na parede (na ficção e na realidade). O soco desferido na parede fez a parede balançar (a casa não era frágil, o jogador era corpulento) e assustou a todos ali, principalmente as jogadoras, que sentiram-se realmente intimidadas pela ação daquele jogador.

Daquele ponto em diante elas se retraíram completamente e ao fim da sessão, quando falei com elas, me disseram que não acharam a experiência legal e que não voltariam para jogar.

Não tive mais notícias delas.

Experiências recentes

Recentemente, mestrando alguns sistemas, percebi que alguns jogadores “veteranos” parecem ter uma fórmula para “jogar certo” e tentam aplicar essa fórmula sempre que uma mulher está na mesa e declara suas ações, o que acaba gerando situações embaraçosas.

 

[blogoma_blockquote]O jogador tende a se achar a última bolacha do pacote.[/blogoma_blockquote]

 

Esse machismo e sexismo que infelizmente dá às caras nas mesas de RPG, já me foi relatada por uma amiga, com a qual joguei alguns anos atrás. Mesmo sendo amiga de todos os jogadores e de se conheceram a vários anos, quando jogavam, sua opinião tendia a ser menos valorizada pelos demais, o que a enchia de frustrações.

Eu particularmente gosto de gravar as sessões que narro e acabo ouvindo-as no carro, a caminho do trabalho. Faço isso para escrever o diário da campanha, mas vez ou outra me deparo com frases ditas e que passaram despercebidas na mesa de jogo que são sinais de comportamento sexista e quando isso acontece é hora de ler novamente o contrato social.

E então me lembrei de mais um fato, que me chamou muito atenção recentemente…

Mulheres que não jogam com personagens mulheres

Em duas oportunidades distintas, mestrei one shots dos RPGs Lamentations of the Flame Princess e Swords & Wizardry e senti uma resistência das jogadoras em interpretar personagens femininas e fui informado por elas, nas duas ocasiões, que elas já haviam sofrido preconceito por jogar como meninas, isso porque normalmente elas têm suas opiniões menosprezadas pelos colegas. Além disso, quando suas personagens são capturadas, normalmente são violentadas. Algumas relataram, inclusive, que suas personagens são assediadas e muitas vezes violentadas pelos próprios colegas de grupo.

Não é a toa que as mulheres se afastem de determinados grupos, até mesmo desistindo completamente do jogo.

O que eu faço e tem funcionado?

Primeiro: estabeleço o contrato social deixando bem claro quais comportamentos são esperados e quais não serão tolerados. Não tratar do contrato social é esperar que todos tenham “noção” e ajam com civilidade. Infelizmente, algumas pessoas confundem isso com “pode tudo”, por isso, discuta o contrato social e sempre que possível, revise-o para os jogadores.

Segundo: sempre dou oportunidade às mulheres de narrar. No projeto que conduzo, iniciamos com a formação de narradores e narradoras e determinei que as jogadoras iriam conhecer um sistema e narrá-lo para os demais participantes, eu inclusive. As experiências foram fantásticas e foi muito bom ver os jogadores ajudando-se mutuamente para tornar a experiência de jogo mais participativa, dinâmica e colaborativa.

Terceiro: a diversão é o que importa. Mas todos têm que estar se divertindo. Não adianta uma parte do grupo divertir-se enquanto outra parte, ainda que seja uma pessoa, não esteja. Pior ainda se ela não estiver se divertindo por não ter um papel ativo na história sendo contada, se está sendo excluída ou diminuída simplesmente por ser mulher.

O RPG é um jogo colaborativo e para fazer jus a isso, precisa da participação de todos. Seu principal objetivo é o desenvolvimento de uma experiência colaborativa, com uma história sendo desenvolvida a partir das ações de todos os envolvidos. A história precisa ser narrada de forma que todos se sintam confortáveis, sem forçar a barra e respeitando todos os envolvidos. O ambiente precisa ser inclusivo (em todos os sentidos) e todas as formas de exclusão precisam ser combatidas. Todas as formas de sexismo e misoginia devem ser combatidas.

Precisamos dar o exemplo.
Por mais mesas de RPG com mulheres.
Por mais respeito.
Por uma comunidade sem preconceitos.

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Escrito por Franciolli Araújo
Esposo de Paula, pai de Pedro e Nathanael. Professor e pesquisador na área de mineração. Um sujeito indeterminado que gosta de contar histórias e escrever sobre elas e acredita que o RPG é o hobbie perfeito, embora existam controvérsias.