Saudações.

Recentemente fui citado em uma postagem no Facebook® em uma postagem que falava sobre a famigerada “regra de ouro“. A citação, feita pelo Marcelo Telles da Rede RPG, me lembrou dos tempos áureos do ForjaRPG, que escrevi durante um bom tempo com o grande Pedro Leone, e que na época focava muito em teoria do RPG e D&D 4E.

Como a chamada foi provocativa (no bom sentido), resolvi reviver alguns desses artigos que marcaram época e que podem trazer à luz boas discussões e ajudar a entender uma série de conceitos que podem não ser importantes para aqueles jogadores que não são game designers e nem pretendem ser, mas que podem ajudar bastante no entendimento da criação de novos sistemas, de aventuras, contribuindo, quem sabe, para trazer jogadores novatos para a área de desenvolvimento de jogos.

Ron Edwards é um projetista e teórico de RPG, além de influente membro da comunidade dos RPGs indies. Seus trabalhos incluem a criação dos RPGs: Sorcerer, Trollbabe [comentado no blog do @tionitro], S/Lay w/Me, bem como foi criador do Big Model, também já abordado pelo @tionitro no seu Nitrocast, além de ser cofundador do The Forge, um fórum de discussão de teorias de RPG.

Após perceber uma série de discussões novamente pela internet, resolvi fazer a tradução deste artigo e a primeira coisa que fiz foi enviar um e-mail ao Ron Edwards solicitando autorização para traduzi-lo. Ele autorizou prontamente a tradução, mas solicitou que fosse feita uma observação:

O artigo que os senhores e senhoras lerão agora foi escrito inicialmente em 1999 e ao longo dos anos amadureceu e passou por muitas atualizações, tendo sido muito desenvolvido e esclarecido desde então.


Autor: Ron Edwards sorcerer@sorcerer-rpg.com
Tradução: Franciolli Araújo
Revisão: Pedro Leone
Copyright Adept Press


Eu tenho ouvido uma certa teoria sobre role-playing games sendo repetida por quase 20 anos. Aqui está ela:

Não importa o sistema que seja usado. Um jogo é tão bom quanto as pessoas que o jogam, e qualquer sistema pode funcionar com os jogadores e mestres certos.

Minha opinião? Eu discordo completamente.

Ei,” você pode dizer, “meu mestre Herbie pode mestrar qualquer coisa. O sistema pode ser uma porcaria, mas ele vai dar umas mexidas, tirar o que não gosta e ele vai funcionar.” Certo, tudo bem. Herbie é talentoso. No entanto, imagine se ele não tivesse que gastar tanto tempo selecionando mecânicas.

(Lembrem-se que estou falando sobre sistema, não material com fontes ou conteúdo de histórias.)

Estou sugerindo um sistema que seja melhor e que entre outras coisas, não faça com que Herbie perca tanto tempo.“Ah! Está certo,” alguém pode então dizer. “Mas isso ainda é uma questão de opiniões sobre quais jogos são bons. Ninguém pode dizer com segurança se um RPG é melhor do que outro, isso é só uma questão de gosto.

Novamente, eu discordo completamente. Algumas definições podem ajudar.

Primeiro, estou falando sobre RPGs tradicionais, nos quais o mestre é um humano e os jogadores estão fisicamente presentes durante o jogo. Segundo, por “sistema” eu quero dizer os métodos para resolver o que está acontecendo durante o jogo. Isso tem que “funcionar” de duas maneiras: em termos de pessoas reais jogando um jogo e de personagens experimentando eventos fictícios.

 

Design de Sistema: Parte 1

(O texto abaixo é baseado nas ideias presentes no site Dark Shire, mas eu tenho expandido suas aplicações amplamente.)

São sugeridos os objetivos ou perspectivas de três jogadores, e cada um dos jogadores é conduzido a situações de interpretação próprias de cada um, com alguma, mas não muita, possibilidade de entrecruzamentos.

  • Gamista. Este jogador é satisfeito se o sistema inclui uma disputa na qual ele ou ela tem uma chance de vencer. Normalmente isso significa o personagem versus um oponente NPC, mas os gamistas também incluem o Violador de Sistemas e o jogador do tipo dominador. RPGs apropriados para gamistas incluem Rifts e Shadowrun.
  • Narrativista. Este jogador é satisfeito se uma sessão de RPG resultar em uma boa história. RPGs para narrativistas incluem Over the Edge, Prince Valiant, The Whispering Vault e Everway.
  • Simulacionista. Este jogador é satisfeito se o sistema “cria” um pequeno universo bolsão sem exageros. Simulacionistas incluem os subtipos bem conhecidos como Realistas. Bons jogos para simulacionistas incluem GURPS e Pendragon.
Aqui eu sugiro que os sistemas de design de RPG não podem abarcar as três perspectivas de uma vez. Por exemplo:

Quanto tempo é preciso na vida real para resolver uma ação do jogo?

  • Os simulacionistas aceitam demoras enquanto isso aumente a precisão;
  • Os narrativistas odeiam demoras;
  • Os gamistas aceitam demoras ou métodos complexos apenas se eles puderem ser explorados.

O que constitui sucesso?

  • Os narrativistas demandam uma resolução dramática;
  • Os gamistas querem saber o quão melhores são em relação ao outro cara.

Como os personagens dos jogadores podem ser efetivamente “equilibrados”?

  • Os narrativistas não se importam;
  • Os simulacionistas querem refletir o sistema social do mundo de jogo;
  • Os gamistas demandam apenas um campo de jogo justo.

Um dos maiores problemas que eu observo nos sistemas de RPG é que eles frequentemente tentam satisfazer as três perspectivas de uma vez. O resultado, infelizmente, é garantia que qualquer jogador possa se irritar com algum aspecto do sistema durante o jogo.

O tempo do mestre então será empregado, como no exemplo do Herbie, a jogar fora aspectos que não estão de acordo com um grupo em particular. Um “bom” mestre se torna aquele que seja capaz de fazer isso bem – mas por que não eliminar esta etapa trabalhosa e permitir (por exemplo) que um mestra gamista use um jogo gamista, indo direto ao ponto? Eu sugiro que a criação de sistemas seja feita especificamente de acordo com as perspectivas como prioridade no designe de RPG.

(Note, portanto, que eu posso elogiar um dado sistema por que ele combina maravilhosamente com uma destas perspectivas – mesmo se eu não compartilhar esta perspectiva e possa odiar aquele jogo. Este é um ponto importante, porque eu agora tenho algum critério para julgar, ao invés de apenas falar sobre “o que eu gosto.”)

 

Design de Sistema: Parte 2

Agora que o sistema tem uma perspectiva ou objetivo para ser utilizado como medida, é hora de dissecar o sistema de resolução com alguns detalhes. Aqui eu sigo as sugestões de Jonathan Tweet (encontradas no livro do excelente RPG Everway) de que existem três modos de resoluções em RPG.

  • Sorte. Significa uma faixa de resultados possíveis para cada ocasião: “rolei 10 em 3 dados, abaixo de minha habilidade que é 12; eu acertei!). Muitos sistemas de RPG são primariamente baseados em Sorte por razões históricas; métodos incluem dados, cartas e outros elementos.
  • Karma. Compara dois valores fixos: “eu tenho 7 em esgrima e você tem 4, eu ganho“. Amber é um dos poucos jogos de RPG baseados em karma.
  • Drama. O narrador (ou raramente o jogador) resolve o problema dizendo o que acontece: “você o fura!” diz o narrador, sem rolar dados ou consultar números de qualquer tipo.

Um dado sistema pode certamente misturar e combinar estes métodos e de fato, Everway na verdade permite que o narrador prepare a sua própria mistura. Amber, por exemplo, modifica seu sistema de Karma com Drama; Extreme Vengeance modifica seu método de Drama com Sorte; Sorcerer modifica Sorte com Drama. Alguns sistemas usam diferentes métodos para diferentes conjuntos de atividades, por exemplo, AD&D usa Karma para magia e Sorte para combate.

Vamos considerar os métodos de Sorte como exemplo, pois eles são os mais utilizados. Então a questão é, dado um sistema, isto é, principalmente baseado em Sorte, quão bem ele funciona durante o jogo? Eu sugiro duas coisas a serem checadas cuidadosamente (estes termos foram roubados da ecologia de todas as coisas).

  • Tempo de procura, significando, quanto tempo leva para saber o que você consegue? Isso inclui saber quantos dados rolar, calcular os modificadores, contar o resultado, etc.
  • Controle do tempo, significando, o que acontece? Isso inclui comparar os resultados de uma rolagem com outra rolagem ou numa tabela, mover-se para o próximo passo se tiver algum, descontar pontos de vida, verificar atordoamento, etc.

Eu certamente não posso ditar quanto é pouco ou muito – mas eu afirmo que se eles não forem apropriados para as perspectivas dos jogadores no jogo (gamista, narrativista e simulacionista), os jogadores irão lamentar-se, com razão, que o sistema “foi pro brejo” (narrativista), é “injusto” (gamista) ou “não é realista” (simulacionista).

Um bom sistema de resolução tem que fazer o trabalho no tempo apropriado. Qual o trabalho e quanto tempo é apropriado, depende da perspectiva. Um novo sistema de RPG não tem desculpas para confiar em velhos paradigmas de (1) role iniciativa, (2) role para acertar, (3) role defesa, (4) role dano, (5) verifique se ficou atordoado, etc., etc. Isto são resquícios dos jogos de guerra, que são estritamente simulacionistas + gamistas.

O RPG para você pode ser muito, muito diferente. Em Zero, por exemplo, a ordem das ações, o sucesso de cada ação, o grau de sucesso para cada ação (incluindo dano), e cada outro aspecto das resoluções são determinados por UMA jogada por jogador e UMA jogada pelo mestre, em todos os casos, mesmo em combates de larga escala. Este sistema de jogo é um verdadeiro abridor de olhos para aqueles que usam velhos métodos.

(Novamente: isso acontece por que eu sou um rígido narrativista que adora os sistemas baseados em karma, misturados com um pouco de sorte, mas de acordo com os princípios acima, eu posso agora julgar um sistema de acordo com suas prioridades, ao invés de me guiar apenas pelo “que eu gosto”.)

Outra questão interessante sobre métodos de resolução é, o que na verdade é resolvido em termos de mecânicas de jogo numéricas? Considere três coisas: o evento atual (“eu acerto?”), a energia necessária para faze-lo (“reduza 4 de Vigor”) e a recompensa (“você causou 18 pontos de dano, que são 18 pontos de energia, deduza-os”).

Alimento para ideias: talvez um RPG só precise de apenas um, ou dois destes e outro simplesmente desaparece – não importa qual. No entanto, eu ainda estou pensando sobre este problema; no momento isso é só uma ideia, não uma conclusão.

Concluindo

Em resumo, eu sugiro que um bom sistema seja aquele que conheça suas perspectivas e não desperdice qualquer mecânica com as outras duas. Seus métodos de resolução são apropriados para aquela perspectiva: eles pesquisam e manipulam o tempo que funciona para esta perspectiva, em termos tanto do que os jogadores tem que fazer e o que acontece com os personagens.

(Alguém pode até sugerir que o método seja apropriadamente temático, como bolinhas de gude para Asylum e jogar cartas para Castelo Falkenstain; Eu também gosto desta ideia, mas ela não é absolutamente necessária.)

Talvez o debate contínuo sobre “sistema leve” versus “sistema pesado” seja uma perda de tempo. Um sistema não é automaticamente bom se ele é mais ou menos complexo que outro. O grau de complexidade aceitável vem das perspectivas do jogo e devem ser julgadas apenas a partir deste contexto.

Um jogo simulacionista, baseado em sorte, quase tem que ser complexo, mas um jogo narrativista baseado em karma é melhor aceito como um sistema simples.

Por favor, considere comparar alguns sistemas você mesmo antes de reagir fortemente contra este ensaio. Eu respeito sua opinião, mas é justo considerar quantos jogos de interpretação você na verdade jogou. Isto é, histórias reais e sessões com personagens que os jogadores criaram e cuidaram, não demonstrações em torneios ou um combate rápido.

Eu suspeito que aqueles de nós que já jogaram mais de cinco ou dez RPGs de forma verdadeira concordarão que “o sistema não importa” é um mito.

Compartilhe:
Escrito por Franciolli Araújo
Esposo de Paula, pai de Pedro e Nathanael. Professor e pesquisador na área de mineração. Um sujeito indeterminado que gosta de contar histórias e escrever sobre elas e acredita que o RPG é o hobbie perfeito, embora existam controvérsias.