Saudações! Estou há muito tempo devendo a resenha do excelente Espírito do Século publicado pela RetroPunk em 2012. Tentei gravar uma vídeo resenha no estilo da que fiz para o (também ótimo) Este Corpo Mortal, mas depois de 3 tentativas eu desisti. O livro tem informações e detalhes demais que valem a pena ser falados e que uma resenha em vídeo seria limitado.

Resolvi finalmente fazer justiça a este excelente RPG de estilo pulp, escrevendo detalhadamente minhas opiniões sobre o livro. Então prepare sua xícara de café e pegue os óculos de leitura, pois tem muito a se falar sobre ele!

O Que é Pulp?

Aventura! Perigo! Emoção! Cenas de ação completamente irreais mas absolutamente divertidas! Estas são algumas das lembranças que tenho ao pensar no gênero pulp e que são perfeitamente representadas por todo o livro. Mas afinal, o que é pulp?

O pulp na verdade não é um gênero. O nome surgiu de revistas extremamente baratas, feitas de papel de má-qualidade (chamado de polpa, por isso o nome) que fizeram bastante sucesso durante a década de 20 e 30, principalmente devido ao seu incrível preço de 10 centavos por uma revista de 128 páginas recheado de histórias fantásticas e capa sensacionalista. Mas foi através do pulp que grandes escritores se firmaram, como por exemplo Isaac Asimov,  Robert E. Howard e H. P. Lovecraft, que criaram personagens até hoje famosos, como Flash Gordon, Buck Rogers, Zorro e Tarzan, por exemplo.

Algumas capas de revistas pulp do início do século 20

Os tipos de histórias publicadas variavam muito, e compreendiam diversos gêneros como Western, guerra, fantasia, ficção científica e crime. Também variavam muito a qualidade das histórias, que muitas vezes eram bem ruins – cheias de racismo, sexismo ou simplesmente escrita ruim. As revistas foram desparecendo durante a Segunda Guerra Mundial, devido ao encarecimento do papel e a perda do público.

No entanto, o clima de ação e aventura muito comum as histórias pulp estão vivas até hoje e ao alcance de todos, através de filmes como A Liga Estraordinária, Capitão Sky E o Mundo de Amanhã, O Sombra, A Lenda do Tesouro Perdido e outros filmes do Indiana Jones, Sherlock Holmes e sua continuação, A Máscara do Zorro, A Múmia e continuações, Viagem ao Centro da Terra – O Filme, King Kong, entre outros.

Se você quer saber mais sobre pulp, recomendo o excelente artigo THE PULP AVENGERS: Game Mastering Pulp Adventures in the 1930s and 1940s, que também é mencionado na introdução do Espírito do Século.

O Livro

A primeira coisa que se nota sobre um livro é sua aparência, e nisso a versão brasileira da Retropunk está muito melhor do que a original da Evil Hat. A brasileira tem capa dura, 364 páginas de papel de excelente qualidade e ilustrações completamente novas feitas pela Germana Viana (Busca Final) especialmente para o livro e que combinaram muito bem com o clima pulp.

Como pontos negativos, a tradução nem sempre mantém o padrão excelente dos outros lançamentos da RetroPunk como o Fiasco, e assim como o  livro americano, ele é preto e branco – mas estou procurando pelo em ovo reclamando disso.

Na entrevista com o Guilherme Moraes, ele disse que foi em  busca de outras licenças para provar para a Pinnacle que era uma editora séria e que poderia publicar o Savage Worlds aqui no Brasil. Se ainda havia alguma dúvida disso, essa lindíssima edição do Espírito do Século vai provar que a RetroPunk tem capacidade de pegar algo que já era bom e tornar excelente.

O Sistema Fate

Algumas pessoas dizem que o sistema do FATE é simples, outros dizem que é complexo. Eu acredito na primeira parte, e a prova disso é que existe um resumo do sistema feito em duas páginas, o Tri-fold Fate.

O FATE é baseado em outro sistema OGL chamado Fudge, que utiliza dados especiais. Eles parecem com d6, mas ao invés de números eles tem sinais: dois lados tem sinal de “+”, outros dois tem sinal de “-” e os outros dois ficam vazios. Eles são chamados de Fudge Dice:

Todas as rolagens no sistema são feitas utilizado 4 destes dados, ou abreviando para 4dF. Isso faz com que os dados dêem um resultado que vai entre -4 até +4, sendo que o valor zero é o mais resultado mais comum. Muitos reclamam de ter que comprar dados especiais, mas a RetroPunk está vendendo os 4dF por um preço muito camarada.

Junto com a rolagem dos dados, você irá somar com o seu nível da perícia, que pode ir de 0 a +5. No Espírito do Século não existem atributos separados, eles estão incluídos na lista de perícias. O sucesso ocorre quando você atinge o resultado determinado pelo mestre, ou se você tirar mais do que o seu oponente. Ao acertar exatamente a dificuldade do teste, você consegue um sucesso marginal. Se você tirar mais do que o necessário, você pode gastar a diferença para aumentar o seu sucesso, o que normalmente é feito aumentando a qualidade ou diminuindo o tempo gasto.

As regras de conflito são um pouco mais detalhadas: ao estabelecer o tipo de conflito e quais as perícias relevantes, os personagens tem as seguintes opções de ação:

  • Atacar: rolar um teste versus com o defensor. Caso tenha sucesso, a diferença do teste será causado em “dano” no personagem defensor.
  • Manobra: um teste de perícia para criar um aspecto temporário na cena (mais detalhes na seção dos Aspectos).
  • Defender: não fazer nenhuma ação para ganhar +2 na sua defesa.
  • Bloquear: impedir outro personagem de fazer algum tipo de ação, com um teste versus de perícia.

O dano é marcado como tensão no personagem. Existem dois marcadores de tensão: vitalidade, para ataques físicos, e autocontrole para situações sociais e duelos mentais. Normalmente eles tem cinco espaços para marcação da tensão, mas você pode aumentar o tamanho selecionando perícias específicas (Resistência e Determinação).

A parte interessante é que ao acabarem os marcadores de tensão ou quando receber uma tensão maior do que o nível máximo que ele tem, o personagem precisa ganhar uma Consequência. A consequência é um aspecto (veja abaixo) negativo sobre o personagem relevante ao tipo de conflito que ele está enfrentando. As consequências possuem graus: leve, moderado e grave, e o que as diferencia é a duração que ela irá permanecer no personagem. Como opção, você também pode ganhar uma consequência voluntariamente para negar uma tensão no seu personagem.

Aspectos, Pontos de Destino, Façanhas e Economia

As regras do FATE são simples e funcionais, mas a grande estrela do sistema são os Aspectos. Eles são pequenos descritivos, normalmente em forma de adjetivos ou pequenas frases
, que descrevem alguma coisa no jogo. Cada personagem do Espírito do Século possui dez aspectos, mas elas não estão limitadas a personagens: cenas, objetos, lugares e praticamente qualquer coisa pode ter um aspecto associado. Então seu personagem pode ser “Forte como um Touro”, enquanto o lugar onde vocês estão enfrentando o vilão possui como aspecto “Névoa Sinistra”.

Os aspectos estão diretamente ligado aos pontos de destino. Cada personagem inicia a sessão com dez pontos de destino, e são através deles que eles irão interagir com os aspectos. A primeira opção é utilizar um ponto de destino para Invocar um Aspecto. Ao invocar o aspecto do seu personagem que seja relevante a um teste, o personagem ganha um bônus de +2 ou permite rerolar a jogada. Pode parecer pouco, mas +2 no FATE significa muita coisa devido a curva de probabilidade dos dados. Você pode também invocar um aspecto para ter benefícios que não são ligados diretamente a testes: por exemplo, você pode invocar um aspecto de uma organização que você faz parte para dizer que ela possui uma sede nessa cidade. Quando você cria algo na história relacionado ao seu aspecto, isso se chama Declaração.

Outra possibilidade é você invocar um aspecto que não é do seu personagem ao seu favor. Lembra-se da Manobra acima? Ela serve para criar aspectos temporários. Imagine que você fez uma manobra para derrubar óleo no chão e criou o aspecto “Chão Escorregadio”. Ao dar um golpe no seu inimigo, você pode invocar o aspecto criado pela manobra e receber o bônus de +2 ou permitir a rerolagem. Você também pode fazer declarações baseados nesses aspectos. Essa maneira chama-se Marcação na tradução brasileira.

Por fim, existe a maneira que você ganha novos pontos de destino para gastá-los das maneiras acima. Isso acontece quando um aspecto é utilizado para complicar ou dificultar a vida do personagem. A pessoa que está sendo prejudicada pelo aspecto tem uma opção: ela pode aceitar a parte negativa, e nesse caso ela ganha um ponto de destino, ou ela pode negar, pagando um ponto de destino dela. Isso chama-se Forçar o Aspecto. Normalmente isso é iniciado pelo mestre, mas nada impede que um jogador force o aspecto de outro jogador, dando a ele um ponto de destino caso ele aceite. Veja o exemplo abaixo, retirado do livro (página 51):

Exemplo: Mack Silver possui um aspecto para o seu Arqui-inimigo, Michael Gold. Durante uma festa, Mack acaba encontrando Michael. Agora, porque Michael é inimigo de Mack, o aspecto o obrigaria a responder de determinada maneira. Mack pode optar por gastar um Ponto de Destino para agir normalmente e não responder a Michael e sua inevitável provocação. Alternativamente, Mack pode ganhar um Ponto de Destino para responder apropriadamente, de acordo com a longa inimizade entre os dois. Se “apropriadamente” significa insultar Michael ou dar um soco nele, será uma opção do jogador de Mack.

Note que essa não é a única maneira de ganhar pontos de destino forçando os aspectos. O jogador pode interpretar o lado ruim dos aspectos do seu personagem e pedir uma recompensa do mestre, mesmo sem que ele tenha compelido diretamente o personagem. Dessa forma, os aspectos também funcionam como uma excelente recompensa de interpretação.

Essa interação dos aspectos e dos pontos de destino cria o que os gringos chamam de “Fate Economy“, que é o ciclo de gastar os pontos para influenciar mais a história e ganhar de volta os pontos por interpretar os defeitos do personagem. Este ciclo pra mim é o grande charme do FATE, e o que fez me empolgar imediatamente com ele.

Mas não são apenas com os aspectos que você pode gastar seus preciosos pontos de destino. Todos os personagens de Espírito do Século possuem também Façanhas, que são habilidades especiais/heróicas que quebram um pouco as regras normais do sistema e que algumas vezes precisam ser abastecidas por um ponto de destino.

O Fractal do Fate

O Fractal do Fate é uma parte central do FATE que eu achei importante mencionar. Ele não é mencionado de forma explícita no livro, mas eu acho um conceito muito interessante para quem está utilizando o sistema para fazer seu próprio hack. Basicamente, o sistema foi desenhado para que as suas diversas partes móveis sejam aplicáveis em qualquer escala, e que você possa usar as regras de resolução de conflitos para qualquer escala.

Os diversos descritivos dos personagens, como perícias e aspectos, podem ser utilizados para descrever não apenas personagens, como também exércitos inteiros, nações, naves espaciais, planetas e até mesmo equipamento. No livro existe o exemplo de atribuir aspectos a cenas e situações, mas nada impede você atribuir níveis de perícias e aspectos a naves e rolar um conflito espacial utilizando as mesmas regras básicas do sistema.

Essa elegância e simplicidade do FATE é um dos maiores atrativos do sistema pra mim, e foi o que fez inúmeros sistemas surgirem dele: Legends of Anglerre, Starblazer Adventures, Strands of Fate e Diaspora, apenas para citar alguns. Se você quiser uma explicação mais detalhada sobre o fractal do fate, o podcast Masterplan fez uma excelente entrevista com Leonard Balsera sobre o assunto.

Criação de Personagem

Também não posso deixar de mencionar o processo de criação de personagem, que é especialmente genial. A criação deve ser feita em grupo, e é dividido em etapas. Na primeira, você pensa um pouco sobre as origens do personagem, no seu passado, e define dois aspectos para ele. Na segunda etapa, são criados dois aspectos relacionados a participação do personagem na primeira guerra mundial. Na terceira etapa, você precisa criar uma aventura passada para o seu personagem, com direito a criar um título pulp digno e criar os dois aspectos relacionados mais uma vez. Por fim, a quarta e quinta etapa, os títulos das aventuras são anotados em um papel e sorteados para os outros jogadores, que irão criar suas participações especiais, criando um vínculo com os outros personagens.

Desnecessário dizer, mas tudo isso precisa ser feito em grupo, e esse procedimento incorpora diversas dicas para criar um grupo coeso e interessante de personagens, pronto para a aventura. Como lado negativo você precisa separar uma sessão inteira apenas para a criação de personagens, o que não seria problema não fosse o sistema ter “pick-up game” como propaganda.

O Clube do Século

Por fim, também é preciso falar do cenário que está presente no Espírito do Século. Eu deixei para falar dele por último pois francamente foi o que menos empolgou no livro. O cenário se passa no ano de 1922 e os jogadores fazem parte do chamado Clube do Século. Superficialmente, parece apenas um grupo filantrópico de pessoas influentes que tem como agenda promover a ciência e as artes. Mas alguns membros do Clube são especiais. Nascidos no primeiro dia do primeiro ano do século, estas pessoas tem habilidades extraordinárias, e ajudarão a mover o século adiante. E se você não adivinhou, esses são os personagens jogadores.

Muito mais interessante que o Clube do Século são as informações sobre a década de 30 presente no livro. Com ela você consegue saber que tecnologias estavam disponíveis, quais já eram tidas como corriqueiras, e quais estavam prestes a aparecer. Uma descrição da sociedade dessa época e uma breve seção sobre preços e disponibilidade de objetos fecham a parte do cenário que apesar
de ser a mais fraca do livro ainda é bem interessante.

Conselhos e Explicações

Se as regras são tão simples, como o livro consegue ter mais de 350 páginas? Bem, boa parte dessas páginas são gastas em uma listagem excessiva de diferentes Façanhas. Mas a maioria delas são gastas em explicações e conselhos extremamente valiosos.

Por exemplo, cada perícia é explicada duas vezes: uma para os jogadores, explicando os usos e tipos de testes para cada perícia, e mais para frente no livro é feito isso para o lado do mestre: como julgar e lidar com diferentes tipos de testes de todas as perícias presentes no livro. E a maioria delas não são simplesmente explicações mecânicas, mas sim verdadeiras pérolas de sabedoria que são aplicáveis em qualquer sistema.

E a cereja em cima do bolo é o capítulo de 10: Dicas & Truques, que traz conselhos de como mestrar eficientemente e preparar uma boa aventura. O capítulo é uma coleção dos melhores conselhos de preparação de aventuras no estilo tradicional que eu já li. Todos os mestres precisam ler este capítulo, que por si só já vale o preço do livro. Por causa desse capítulo também considero o sistema atualmente a melhor opção no Brasil para novatos e iniciantes ao RPG: apenas lendo esse livro você já vai saber mais de 30 anos de conselhos de RPG acumulados.

Nem tudo é Ouro

Infelizmente nem tudo é perfeito no Espírito do Século. Para quem não conhece a origem dele, a Evil Hat conseguiu a licença para publicar um RPG do Dresden Files muito antes do lançamento do FATE 3.0.  O Espírito do Século foi lançado como “prévia de mercado”, para medir a aceitação do sistema e também encontrar arestas que podiam ser aparadas no FATE antes do lançamento oficial do Dresden Files RPG. Dessa forma, o Espírito do Século foi uma versão beta do Dresden Files RPG, e isso transparece nas regras.

Muitas delas foram revisadas no Dresden Files RPG, como os limiares de tensão, a quantidade de aspectos por personagem, taxa de recuperação de pontos de destino diminuído, além de um sistema de evolução de personagem mais robusto. Praticamente todas elas podem ser adaptadas para o Espírito do Século, o que eu com certeza faria nem que seja nos limiares de tensão.

Outro ponto que me tirou um pouco de empolgação com o sistema foi reparar o quanto ele é firmemente tradicional em diversos aspectos. O livro está repleto de exemplos do que eu chamo da síndrome “O Mestre Mandou”: se o mestre deixar, quando o mestre fizer, peça autorização para o mestre, etc. Boa parte dos conselhos do livro também são voltados para o estilo de narração de participacionismo. Nada disso é ruim por si só, mas precisa ficar muito claro que o Espírito do Século é um RPG mais tradicional do que normalmente se prega. O que pra mim foi um ponto negativo eu imagino que para a maior parte das pessoas vá ser extremamente positivo, mas fica o aviso.

Conclusão

Se você leu até aqui já deu para perceber que eu adoro o Espírito do Século. Aguardei ansiosamente o lançamento dele pela RetroPunk, e fiquei extremamente feliz com resultado do trabalho nacional nesse excelente sistema. Eu recomendo o sistema para todos, mesmo aqueles que não se interessam por pulp. Por ser um sistema simples e facilmente hackeável, adaptá-lo para o seu gênero ou estilo favorito não vai ser difícil. E mesmo que você não goste tanto do sistema, as dicas e conselhos do livro sozinhas já valem o valor da capa.

 

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Escrito por Pedro Leone
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